Publicado 22/11/2021 06:00
O filme Marighella, de Wagner Moura, além de levar milhares de espectadores saudosos aos cinemas do país, gerou intensos debates sobre a vida desse personagem tão marcante da nossa história recente. Para além dos aspectos talvez menos conhecidos e curiosos de sua biografia – seu talento como poeta e escritor, por exemplo – o que se destacou nessas discussões foi o questionamento da legitimidade da conduta de Marighella devido às suas crenças marxista-leninistas.
Alguns pensadores de direita argumentam que Marighela queria, na realidade, substituir uma ditadura por outra, ou seja, a militar pela comunista, do proletariado, o que deslegitimaria e retiraria o caráter genuíno e heroico de sua luta. Ainda que essa discussão seja possível sob determinado ponto de vista sociológico, o papel de Marighella na luta armada e contra a ditadura militar brasileira deve ser analisado sob a perspectiva do constitucionalismo e dos direitos, sobretudo, do direito de resistência, que é um direito humano fundamental.
O direito de resistir à violência do Estado esteve presente em todo o percurso da história humana, mas a formulação do conceito remonta ao surgimento do liberalismo político e à influência que este sofreu do protestantismo, especialmente dos huguenotes – calvinistas franceses que sofreram forte perseguição durante as chamadas Guerras Religiosas do século XVI.
Esses protestantes formularam ideias políticas muito conectadas aos seus interesses, graças às quais começou a surgir algum conceito de direito. Para eles, o homem era titular de um conjunto de direitos naturais, advindos de Deus, como o direito à liberdade de expressão, religiosa, de propriedade e direito à prosperidade.
No plano político, esse pensamento se traduziu no entendimento de que esses direitos deveriam ser reconhecidos por meio de um pacto social, que antecede o governante. O papel do governante seria assegurar esse pacto ratificador dos direitos naturais outorgados por Deus ao homem. Se, ao exercer o poder político, o governante passa por cima desses direitos naturais, torna-se um tirano, que pode ser destituído pela comunidade até de forma violenta, se necessário.
Daí deriva justamente a ideia do direito de resistência, depois consolidada por John Locke. Partindo do mesmo conceito dos huguenotes, Locke formula que o direito de reação deve ser proporcional à intensidade da tirania, o que pode consistir em desobediência civil pacífica ou até mesmo em reações violentas, como o tiranicídio, ou seja, a eliminação do tirano.
Esse processo é a fundação, na modernidade, do chamado constitucionalismo, ou seja, uma ideia que compreende que o poder político deve estar subordinado aos direitos, e não o contrário. Sob essa perspectiva, autoritário é o governo cujo poder político está acima da Constituição e dos direitos, decidindo quanto à sua aplicação ou não.
Os iluministas também sempre acalentaram o direito de resistência. A Revolução Francesa se alicerçou nesse direito para instaurar novas formas liberais na França. Todas as chamadas revoluções burguesas, aliás, beberam na fonte do direito de resistência. E assim, por toda a história dos direitos até os nossos dias, se entende, ao menos no plano filosófico-político, que esse é um direito inerente ao que hoje chamamos de direitos humanos.
Feita essa breve contextualização, percebe-se o equívoco que é julgar a figura histórica de Marighella sob o ponto de vista de suas crenças subjetivas. O direito humano à resistência se legitima pela tirania do Estado contra o povo, independentemente da ideologia do resistente. Ao reprimir todo tipo de expressão e usar de força violenta para esmagar a dissidência ao regime, prendendo, torturando e matando, a ditadura militar brasileira justificou e tornou legítimo o direito de resistência e os meios empregados pelos resistentes.
Esse é o ponto que deve ser observado no juízo que se faz da pessoa de Marighella e de seu papel histórico. Marighella foi um combatente que sacrificou a própria vida para possibilitar o exercício de um direito humano fundamental. Sob esse aspecto, sua conduta foi heroica e não pode ser diminuída ou depreciada por conta de suas crenças ideológicas.
Pedro Estevam Serrano é Bacharel, Mestre e Doutor em Direito do Estado pela PUC/SP com Pós-Doutoramento em Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em Ciência Política pelo Institut Catholique de Paris e em Direito Público pela Université Paris Nanterre; Professor de Direito Constitucional e Teoria Geral do Direito na graduação , mestrado e doutorado da PUC/SP, sócio do escritório "Serrano, Hideo e Medeiros Advogados
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