Publicado 19/12/2021 07:00
Em mim, perfilam os anos de humilhações quando rezo diante do corpo sem vida de Dona Dulce. Olho para o crucifixo que pende como os desalinhamentos da alma dessa mulher que, agora, parte para o desconhecido.
As unhas bem feitas encerram os dedos que, inchados, disfarçam a gastura de uma pele que viveu muito. As flores explicam alguma paz. E o som das velas, terminando de queimar, completa a sala sem ninguém do velório. O filho que mora longe não veio. O outro, pouco se sabe dele. Amigos ela não cultivou. Amealhou dinheiros, mas não distribuiu gentilezas.
Trabalhei mais de 30 anos em sua casa. Recebi os sentimentos mais inferiores, os que nascem das desumanidades. Eu precisava sustentar meus filhos. Eu tinha medo de um recomeço. Cozinhava pratos sofisticados e comia o que ela decidia ser o meu paladar. Chorava sozinha as injustiças ditas. Alguma joia não encontrada. Algum dinheiro que, por descuido, descansava em outra gaveta. Ouvia gritos e sermões. E, então, eu cantava. Cantava para dentro, para não parecer descaso e para não adoecer a alma. Gilberto Gil me emprestou estes versos: "Tem que morrer pra germinar plantar n`algum lugar". Sabia nada do significado, mas gostava do resultado que a música tinha em mim.
Enquanto ela crescia em discursos arrogantes, eu cantava e sorria para dentro e limpava em mim as sujeiras que vinham. Minha filha, quando crescida, aconselhou que eu pedisse demissão. Demorei a atender. Tinha medo de ser pior. Os filhos de Dulce gostavam de mim e me davam respeito. Imaginava que, em outra casa, a voz de Dulce pudesse se multiplicar em mais atacadores de almas simples.
Quando Eduardo, meu filho mais novo, arrumou emprego, eu agradeci e me despedi daquela vida. Ela olhou para mim com desdém. Disse que eu não levasse nada da casa. Que ela sabia de tudo e que deixasse tudo limpo antes de ir embora. Que ela haveria de conferir. Nenhuma palavra de gratidão. Nenhum afeto. Nenhuma demonstração de algum sentimento por minha ausência. De cabeça baixa e de alma erguida, saí cantarolando para dentro.
Limpei aquele tempo e fui viver com a pequena aposentadoria que consegui. Meus filhos estão todos bem e, hoje, me dão, inclusive, o que não necessito.
Sou uma mulher que reza, que acredita que a colheita não desmente a semeadura. "Deus sabe a minha confissão, não há o que perdoar, por isso mesmo é que há de haver mais compaixão". Cantei hoje Gil, agora, em voz alta, na calçada que me trouxe ao velório.
Faz 10 anos que eu tranquei esse tempo. Soube, por conhecidos da rua, que nunca mais uma funcionária parou muito na casa. Os tempos são outros. Duas ou três processaram Dona Dulce. E não era pelo dinheiro, era pela dor da humilhação.
Eu vim ao velório sem nenhuma raiva. Vim, porque acho triste a ausência de oração na partida. O filho que mora longe se casou com o filho de uma antiga empregada. E ela jurou deserdar. Não sei se fez. Sei que não se viram mais. O outro, o que pouco se sabe dele, gostou de amar um amigo. A mãe desautorizou e sofreu o ódio da desobediência. Falou que nada receberia do dinheiro dela.
Dinheiro, esse sempre foi o deus de Dulce. Um deus desprovido do sagrado sentimento do amor. Um deus dos trancafiamentos. Não poucas vezes, vi Dona Dulce chorando a vida em uma elegante poltrona azul- marinho. Mexia nos dedos os únicos brilhantes que brilhavam riqueza em sua pobre vida. Quando tentei ajudar, ouvi desaforos e explicações pontificadas de que gentalha não decide vida de gente sofisticada.
Quando chegava em minha casa, desprovida de qualquer sofisticação, meus filhos corriam e me diziam amor. Os cachorros tantos que tivemos emprestavam algazarras para o despedir dos dias. Eu entendia, então, a felicidade.
Hoje, moro em uma casa elegante. Eles compraram para mim. Tenho uma ajudante que me cuida dos detalhes. Retribuo com amor. Ela come o que eu como. Ela bebe o que eu bebo. Ela respira o mesmo ar que me explica sermos todos filhos de um mesmo Pai.
Pedi aos meus filhos para acompanharem, pelo menos, o sepultamento. Eles devem estar chegando. Dizem não entender. Eu planto bondade, apenas isso. E, quando há pragas na minha plantação, eu canto para dentro canções que me devolvem a paz.
As unhas bem feitas encerram os dedos que, inchados, disfarçam a gastura de uma pele que viveu muito. As flores explicam alguma paz. E o som das velas, terminando de queimar, completa a sala sem ninguém do velório. O filho que mora longe não veio. O outro, pouco se sabe dele. Amigos ela não cultivou. Amealhou dinheiros, mas não distribuiu gentilezas.
Trabalhei mais de 30 anos em sua casa. Recebi os sentimentos mais inferiores, os que nascem das desumanidades. Eu precisava sustentar meus filhos. Eu tinha medo de um recomeço. Cozinhava pratos sofisticados e comia o que ela decidia ser o meu paladar. Chorava sozinha as injustiças ditas. Alguma joia não encontrada. Algum dinheiro que, por descuido, descansava em outra gaveta. Ouvia gritos e sermões. E, então, eu cantava. Cantava para dentro, para não parecer descaso e para não adoecer a alma. Gilberto Gil me emprestou estes versos: "Tem que morrer pra germinar plantar n`algum lugar". Sabia nada do significado, mas gostava do resultado que a música tinha em mim.
Enquanto ela crescia em discursos arrogantes, eu cantava e sorria para dentro e limpava em mim as sujeiras que vinham. Minha filha, quando crescida, aconselhou que eu pedisse demissão. Demorei a atender. Tinha medo de ser pior. Os filhos de Dulce gostavam de mim e me davam respeito. Imaginava que, em outra casa, a voz de Dulce pudesse se multiplicar em mais atacadores de almas simples.
Quando Eduardo, meu filho mais novo, arrumou emprego, eu agradeci e me despedi daquela vida. Ela olhou para mim com desdém. Disse que eu não levasse nada da casa. Que ela sabia de tudo e que deixasse tudo limpo antes de ir embora. Que ela haveria de conferir. Nenhuma palavra de gratidão. Nenhum afeto. Nenhuma demonstração de algum sentimento por minha ausência. De cabeça baixa e de alma erguida, saí cantarolando para dentro.
Limpei aquele tempo e fui viver com a pequena aposentadoria que consegui. Meus filhos estão todos bem e, hoje, me dão, inclusive, o que não necessito.
Sou uma mulher que reza, que acredita que a colheita não desmente a semeadura. "Deus sabe a minha confissão, não há o que perdoar, por isso mesmo é que há de haver mais compaixão". Cantei hoje Gil, agora, em voz alta, na calçada que me trouxe ao velório.
Faz 10 anos que eu tranquei esse tempo. Soube, por conhecidos da rua, que nunca mais uma funcionária parou muito na casa. Os tempos são outros. Duas ou três processaram Dona Dulce. E não era pelo dinheiro, era pela dor da humilhação.
Eu vim ao velório sem nenhuma raiva. Vim, porque acho triste a ausência de oração na partida. O filho que mora longe se casou com o filho de uma antiga empregada. E ela jurou deserdar. Não sei se fez. Sei que não se viram mais. O outro, o que pouco se sabe dele, gostou de amar um amigo. A mãe desautorizou e sofreu o ódio da desobediência. Falou que nada receberia do dinheiro dela.
Dinheiro, esse sempre foi o deus de Dulce. Um deus desprovido do sagrado sentimento do amor. Um deus dos trancafiamentos. Não poucas vezes, vi Dona Dulce chorando a vida em uma elegante poltrona azul- marinho. Mexia nos dedos os únicos brilhantes que brilhavam riqueza em sua pobre vida. Quando tentei ajudar, ouvi desaforos e explicações pontificadas de que gentalha não decide vida de gente sofisticada.
Quando chegava em minha casa, desprovida de qualquer sofisticação, meus filhos corriam e me diziam amor. Os cachorros tantos que tivemos emprestavam algazarras para o despedir dos dias. Eu entendia, então, a felicidade.
Hoje, moro em uma casa elegante. Eles compraram para mim. Tenho uma ajudante que me cuida dos detalhes. Retribuo com amor. Ela come o que eu como. Ela bebe o que eu bebo. Ela respira o mesmo ar que me explica sermos todos filhos de um mesmo Pai.
Pedi aos meus filhos para acompanharem, pelo menos, o sepultamento. Eles devem estar chegando. Dizem não entender. Eu planto bondade, apenas isso. E, quando há pragas na minha plantação, eu canto para dentro canções que me devolvem a paz.
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