Rio - De repente, a porta se abre. Com certeza foi o Chiquinho, o gentil porteiro do Edifício Ragazzi, na Lapa, que girou a maçaneta para adiantar a vida de um dos 200 moradores que chegou cheio de embrulhos na mão. Mas, para que hoje o Chiquinho abra portas, há 30 anos alguém lhe abriu uma. Vida de porteiro é que nem iceberg: a parte visível, que conhecemos, é sempre muito menor do que a submersa, aquela que, invariavelmente, não tomamos conhecimento.
Porém, um projeto literário traz à tona a história de algumas dessas figuras emblemáticas da sociedade carioca. 'Da minha porta, vejo o mundo', da Editora Letras & Sons Comunicação, narra a vida de 12 porteiros, que chegaram ao Rio de Janeiro em busca de oportunidades e, a partir da portaria de um prédio, construíram sua história. E, em alguns casos, belo patrimônio.
"É um personagem importante na vida de quem mora em grande cidade e que não tem a história contada", explicou o jornalista Aydano André Motta, responsável pelas entrevistas e textos do livro. "Existe o universo da invisibilidade dos porteiros: eles trabalham, fazem parte da vida das pessoas, mas são pouco conhecidos. O livro tem uma pegada social", acrescentou a editora Alcione Koritzky, que produziu o livro junto com o documentarista Sylas Andrade, o dono da ideia. "O projeto joga luz sobre a profissão, ajuda a contar a história da migração do Nordeste para o Rio, a partir da década de 1950, e é uma homenagem a essa categoria que faz parte da nossa vida", resumiu Andrade.
A história de Chiquinho, como é carinhosamente conhecido o porteiro Francisco Ferreira do Nascimento, 50 anos, cabe perfeitamente em qualquer livro. Antes de vir para o Rio, há 30 anos, enchia as mãos de calo na plantação de abacaxi, em Sapé, cidade de 50 mil habitantes da Paraíba, a 40 km da capital, João Pessoa. "Trabalhei na roça dos 12 aos 20 anos. Não aguentava mais, queria outro emprego, mas lá não tinha. Pedi as contas, e o patrão, em vez de me dar dinheiro, me indenizou com uma passagem só de ida para o Rio", lembrou Chiquinho. Foram dois dias de viagem em um ônibus da Itapemirim. Chegando à Cidade Maravilhosa, amigos arrumaram emprego para ele no prédio, onde está até hoje.
Segundo Aydano Motta, a trajetória desses bravos nordestinos é uma epopeia. "Eles têm história de vida que nos envergonha com nossos draminhas de classe média. Geralmente, têm infância miserável, saem de casa para um lugar hostil, trabalham muito e constroem patrimônio. São personagens incríveis". Andrade chama a atenção para a importância que o porteiro acaba tendo na vida do prédio. "A relação porteiro-morador do Rio é especial, especialmente nessa crise de confiabilidade que a gente enfrenta. Eles estão sempre dispostos a ouvir, mas não estão ali para interferir na tua vida. Veem nossos filhos crescerem e acabam testemunhando histórias de várias vidas", afirmou. E veem mesmo. "Peguei o síndico no colo", contou Chiquinho, para quem o segredo da profissão é "ser amigo, tratar com respeito tanto os adultos quanto as crianças e ficar atento". No Rio, Chiquinho casou, teve uma filha (hoje com 19 anos) e conseguiu comprar um apartamento em Inhaúma, na Zona Norte da cidade. No seu rastro, vieram os quatro irmãos, que também trabalham como porteiros.
Nem o IBGE sabe quantos porteiros existem no Brasil. No Rio, a estimativa é que sejam 120 mil. Uma curiosidade: o Dia do Porteiro é celebrado no 29 de junho, em homenagem ao padroeiro da categoria: São Pedro, o 'porteiro do céu'.
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