23/02/2018 - O porteiro Franscisco Ferreira do Nascimento trabalhar a 30 anos como porteiro na Lapa. Foto: Luciano Belford / Agencia O DiaLuciano Belford / Agencia O Dia
Por WILSON AQUINO
Publicado 25/02/2018 03:13 | Atualizado 25/02/2018 10:39

Rio - De repente, a porta se abre. Com certeza foi o Chiquinho, o gentil porteiro do Edifício Ragazzi, na Lapa, que girou a maçaneta para adiantar a vida de um dos 200 moradores que chegou cheio de embrulhos na mão. Mas, para que hoje o Chiquinho abra portas, há 30 anos alguém lhe abriu uma. Vida de porteiro é que nem iceberg: a parte visível, que conhecemos, é sempre muito menor do que a submersa, aquela que, invariavelmente, não tomamos conhecimento.

Porém, um projeto literário traz à tona a história de algumas dessas figuras emblemáticas da sociedade carioca. 'Da minha porta, vejo o mundo', da Editora Letras & Sons Comunicação, narra a vida de 12 porteiros, que chegaram ao Rio de Janeiro em busca de oportunidades e, a partir da portaria de um prédio, construíram sua história. E, em alguns casos, belo patrimônio.

"É um personagem importante na vida de quem mora em grande cidade e que não tem a história contada", explicou o jornalista Aydano André Motta, responsável pelas entrevistas e textos do livro. "Existe o universo da invisibilidade dos porteiros: eles trabalham, fazem parte da vida das pessoas, mas são pouco conhecidos. O livro tem uma pegada social", acrescentou a editora Alcione Koritzky, que produziu o livro junto com o documentarista Sylas Andrade, o dono da ideia. "O projeto joga luz sobre a profissão, ajuda a contar a história da migração do Nordeste para o Rio, a partir da década de 1950, e é uma homenagem a essa categoria que faz parte da nossa vida", resumiu Andrade.

A história de Chiquinho, como é carinhosamente conhecido o porteiro Francisco Ferreira do Nascimento, 50 anos, cabe perfeitamente em qualquer livro. Antes de vir para o Rio, há 30 anos, enchia as mãos de calo na plantação de abacaxi, em Sapé, cidade de 50 mil habitantes da Paraíba, a 40 km da capital, João Pessoa. "Trabalhei na roça dos 12 aos 20 anos. Não aguentava mais, queria outro emprego, mas lá não tinha. Pedi as contas, e o patrão, em vez de me dar dinheiro, me indenizou com uma passagem só de ida para o Rio", lembrou Chiquinho. Foram dois dias de viagem em um ônibus da Itapemirim. Chegando à Cidade Maravilhosa, amigos arrumaram emprego para ele no prédio, onde está até hoje.

Segundo Aydano Motta, a trajetória desses bravos nordestinos é uma epopeia. "Eles têm história de vida que nos envergonha com nossos draminhas de classe média. Geralmente, têm infância miserável, saem de casa para um lugar hostil, trabalham muito e constroem patrimônio. São personagens incríveis". Andrade chama a atenção para a importância que o porteiro acaba tendo na vida do prédio. "A relação porteiro-morador do Rio é especial, especialmente nessa crise de confiabilidade que a gente enfrenta. Eles estão sempre dispostos a ouvir, mas não estão ali para interferir na tua vida. Veem nossos filhos crescerem e acabam testemunhando histórias de várias vidas", afirmou. E veem mesmo. "Peguei o síndico no colo", contou Chiquinho, para quem o segredo da profissão é "ser amigo, tratar com respeito tanto os adultos quanto as crianças e ficar atento". No Rio, Chiquinho casou, teve uma filha (hoje com 19 anos) e conseguiu comprar um apartamento em Inhaúma, na Zona Norte da cidade. No seu rastro, vieram os quatro irmãos, que também trabalham como porteiros.

Nem o IBGE sabe quantos porteiros existem no Brasil. No Rio, a estimativa é que sejam 120 mil. Uma curiosidade: o Dia do Porteiro é celebrado no 29 de junho, em homenagem ao padroeiro da categoria: São Pedro, o 'porteiro do céu'.

Engravidou donzela e fugiu para não morrer
Livro tem textos em português e espanholLuciano Belford / Agencia O Dia
Publicidade
200 quilos de feijão por passagem para o Rio
Francisco saiu do Ceará para Vila Isabelfotos Luciano Belford / Agencia O Dia
Outro Francisco é proprietário da cadeira de porteiro de um prédio. Francisco Vieira dos Santos, 55, trabalha no hall do Edifício Cristal, em Vila Isabel, há 31 anos. Veio fugido da seca, que castigava o Município de Ipueiras, distante seis horas de ônibus de Fortaleza, no Ceará.
Publicidade
"Eu tinha 21 anos e era muito inquieto", lembrou Francisco, que trabalhava na roça. "Éramos 12 irmãos, na lavoura de milho, feijão e mandioca. Só que na seca a planta não desenvolve", explicou Francisco, justificando a migração: "Na roça, a gente não morre de fome, mas tem que sair pra procurar coisa melhor".
Para comprar a passagem só de ida para o Rio, Francisco teve que vender 200 quilos de feijão. Logo que chegou, empregou-se no Edifício Cristal, onde permanece até hoje. São 84 apartamentos e cerca de 250 moradores. Francisco conhece todos eles pelo nome. "Ele é um amigão. Sem o Francisco, o prédio não funciona. Aqui, moram muitos idosos e, volta e meia, ele socorre um", contou a síndica Romana Alves Correia, 65. "O segredo é respeitar as pessoas", ensinou o porteiro, que é torcedor fanático do Flamengo. "Quando tem jogo e eu estou trabalhando, o jeito é ouvir no radinho. Mas a síndica autoriza", se apressou em esclarecer.
Publicidade
Francisco é pai de um filho e tem uma netinha de oito meses. Mas, apesar de viver há 31 anos no Rio de Janeiro, nunca perdeu o vínculo com a terra natal. "Já voltei lá mais de dez vezes e sempre mandei dinheiro para minha mãe", contou. Com o trabalho na portaria, Francisco comprou um apartamento na Pavuna. O prédio dele tem quatro andares, mas sem porteiro. "Não tem esse luxo, não".

Você pode gostar

Comentários

Publicidade

Últimas notícias