são Paulo - As medidas de segurança pública em execução no país, entre elas a intervenção federal no Rio de Janeiro, e sua relação com o atual cenário político foram discutidas, nesta sexta-feira, na capital paulista, no seminário "Desafios para a segurança pública em tempos de intervenção". O evento foi realizado pelo Instituto Vladimir Herzog e pela Fundação Friedrich Ebert Brasil. Os participantes criticaram a criminalização da pobreza e a falta de planejamento e transparência das políticas públicas relacionadas à segurança.
Uma das participantes da mesa, a antropóloga e cientista política da Universidade Federal Fluminense (UFF) Jacqueline Muniz disse que as políticas de segurança passaram a justificar as políticas sociais. "Nós passamos a subordinar os direitos aos bens essenciais – cultura, educação, saúde – à segurança. Ou seja, o direito à cultura agora é para tirar o jovem do crime. Ter educação é para tirar do crime", disse a especialista.
Esse discurso está inserido, segundo a pesquisadora, em um contexto de criminalização das parcelas mais pobres da população. "É um processo perverso que implica a criminalização dos sujeitos e depois na sua descriminalização (quando são oferecidos os serviços básicos)", acrescentou.
Para Jaqueline, o sistema de segurança brasileiro, em especial a polícia, é desfuncional porque nunca foram definidos com clareza os papéis das diversas forças de segurança. "Ninguém sabe onde começa e onde termina a capacidade coercitiva dos meios de força combatentes e comedidos no Brasil", disse, ao falar das corporações que vão desde as guardas municipais, incluindo também forças específicas, como a Polícia do Senado, até as polícias Civil, Federal e Militar.
Com isso, faltam, na avaliação da especialista, instrumentos de controle para a ação policial e transparência dessas instituições. "Está tudo oculto", enfatizou.
Intervenção federal
A opacidade também é a crítica que Jaqueline faz à intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro. Segundo ela, não existe um planejamento prévio do que se pretende com a ação. "Sem um plano de emergência, de intervenção, fica muito difícil avaliar o que está sendo feito. Ainda que se tenha uma ou outra denúncia dos diversos observatórios que foram criados por coletivos do Rio de Janeiro, pouco se sabe", destacou.
No entanto, a antropóloga acredita que a falta de clareza é intencional, integrando ao que ela chama de “política da desinformação". Para ela, nesse cenário, a opinião pública fica mais manipulável a partir do medo. "Você acaba fabricando mais ameaças para justificar dispositivos excludentes e desiguais de proteção", acrescentou.
O procurador do Ministério Público Federal, Marlon Weichert, especialista em justiça de transição e segurança pública, acredita que esse tipo de política vem de construções autoritárias na sociedade e instituições. "A gente não pode distanciar isso de um país com sucessivos legados autoritários. Um país com pouco mais de 500 anos de história e menos de 10% da sua história é de regimes democráticos", contextualizou.
O procurador acrescentou: "Nós temos um sistema de segurança que sempre foi concebido para a repressão social, repressão ao trabalhador”.
Guerra às drogas
Segundo Marlon, como não foi feita uma transição institucional, com o fim da ditadura militar, o Estado continuou a apostar em uma estrutura policial despreparada para combater fenômenos como o crime organizado. "É uma polícia que nunca foi moldada para lidar com o fenômeno de criminalidade e democracia. Eu vou investindo, crescendo um monstro que a gente sabe de antemão que não serve para resolver esse problema", analisou.
Essa estrutura é, em parte, sustentada, na opinião do procurador da República, com o discurso do combate ao tráfico de drogas. "Eu vou combater o varejo da droga na favela, usando de alta militarização. E isso é muito interessante, porque eu posso criminalizar a pobreza. Favela igual a local de droga. Favelado igual a traficante", diz, ao explicar como é construída a argumentação para a criminalização dos moradores de comunidades pobres.
O procurador lembra que a chamada política de guerra às drogas foi construída nos Estados Unidos e serviu de pretexto tanto para repressão de grupos internos, como o movimento negro e os contestadores da Guerra do Vietnã (1959-1975), como para intervenção em outros países. "Além de fazer o controle político, você vende armas e joga a violência para a periferia. Eu posso consumir drogas tranquilamente nos países do Norte, porque eu faço a repressão nos países da periferia", relacionou.
Assim, Marlon diz que o sistema de segurança pública acaba sendo usado como uma política de contenção social, que mantém as áreas mais privilegiadas seguras e as comunidades pobres sob constante violência. "Quando eu militarizo, eu faço repressão social na periferia, eu impeço a organização social para discutir o problema estrutural de desigualdade. Eu não preciso de ditadura militar, porque eu consigo garantir que o pobre não vai se organizar porque ele está sofrendo a mão dura da guerra às drogas".