Lavagem do Cais do Valongo, por religiosos de matriz africana, marca um ano da concessão do título de Patrimônio Mundial Cultural da Unesco ao sítio arqueológico -  Tomaz Silva/Agência Brasil
Lavagem do Cais do Valongo, por religiosos de matriz africana, marca um ano da concessão do título de Patrimônio Mundial Cultural da Unesco ao sítio arqueológico Tomaz Silva/Agência Brasil
Por Agência Brasil

Rio - Patrimônio da Humanidade, o Cais do Valongo, – o maior porto escravagista da história –, no Rio de Janeiro, está abandonado e corre o risco de perder o título. Essa é a avaliação de organizações da sociedade civil e de especialistas ouvidos pela Agência Brasil. Entre eles, o coordenador científico da candidatura do Valongo a patrimônio, o antropólogo Milton Guran. Ele é o responsável por apresentar um balanço das ações no complexo do sítio arqueológico à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Em 9 de julho de 2017, a Unesco registrou o cais em uma lista com mais de 1 mil sítios tombados, como a Acrópole, na Grécia.

O ponto mais polêmico é a construção de um museu nacional, chamado Memorial da Diáspora. O local, conforme pactuado com a Unesco, no dossiê de candidatura, deveria destacar a importância do Cais do Valongo e explicar o impacto do deslocamento de mulheres e homens africanos pelo mundo, a chamada diáspora, devido à imigração forçada.

Segundo o dossiê enviado ao órgão internacional, o memorial tem de ser erguido no prédio Docas Dom Pedro II, considerado um contraponto ao cais, em frente ao monumento arqueológico. Erguido em 1870, pelo engenheiro negro André Rebouças, que exigiu mão de obra livre, o prédio é do Ministério da Cultura, mas está ocupado pela organização não governamental Ação da Cidadania – fundada pelo sociólogo Herbert de Sousa, o Betinho. O contrato de cessão acabou semana passada, mas a organização recorre à Justiça. O Docas é a sede da entidade e também fonte de renda. O galpão, criado para ser um armazém, é alugado pela entidade para festas e eventos privados, o que já foi contestado pelo Ministério Público Federal. 

As organizações do movimento negro e científicas querem que os governos, incluindo a prefeitura, apresentem uma solução para a desocupação rápida do edifício, que é tombado pelo patrimônio nacional e faz parte do complexo do cais, conforme pactuado com a Unesco.

O antropólogo Milton Guran explica que o Memorial da Diáspora foi proposto como instrumento de enfrentamento ao racismo e é uma condição para manutenção do título. Ele acrescenta que a Unesco também não aceita uma organização privada funcionando em um patrimônio mundial tombado. Se essas duas condições não forem cumpridas, Guran afirma que o Brasil pode perder o título.

“O Estado Brasileiro deve à matriz africana um museu [nacional] que reconte a sua história, que dê visibilidade a suas realizações. É inconcebível que o Brasil tenha a segunda maior população negra do planeta, que tenha recebido quase a metade dos africanos da diáspora, mas não tenha um museu sobre isso”, afirmou. Segundo ele, essa é uma obrigação do governo federal. “Se não for cumprida, terei que informar à Unesco, no relatório que entregarei este ano”.

Em defesa da proposta, Guran entregou ao Ministério da Cultura, em agosto de 2017 um abaixo-assinado firmado por 57 proeminentes intelectuais. Ratificaram o documento os historiadores Alberto da Costa e Silva, José Murilo de Carvalho, Flávio Gomes e o congolês Kabengele Munanga.

As organizações negras também cobram ações de infraestrutura no complexo, especialmente no entorno do sítio arqueológico, em frente ao prédio Docas. Guran destacou que, um ano após o tombamento, ainda não foi instalada uma placa dizendo que o local é patrimônio mundial.

“Estamos diante do único patrimônio mundial que não tem sequer uma placa”, disse. “É verdade que o prazo da sinalização é 2019, mas é para a sinalização toda. Para botar uma placa, a Secretaria Municipal de Cultura já poderia ter posto”, criticou. Na avaliação do antropólogo, todo o descaso do Poder Público trata-se de “racismo institucional” e é “sabotagem”. “Não interessa às elites dar visibilidade à matriz africana”, avaliou.

O Ministério da Cultura não é claro sobre as intenções no sítio Cais do Valongo e em relação ao edifício erguido por André Rebouças. Em evento no Rio, na última semana, o ministro Sérgio Sá Leitão disse à reportagem da Rádio Nacional que pretende abrir um edital para ocupação do antigo armazém, sinalizando que a Ação da Cidadania poderá permanecer. Porém, não deu detalhes ou relacionou o edital às ações pactuadas. Antes, o ministro disse que criaria o centro de interpretação no local.

Em nota, o Instituto Nacional do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que também assinou o documento da Unesco, informa que está na fase de captação de recursos. O Iphan destaca, entre as medidas previstas, a criação do centro de interpretação do complexo e o projeto educativo, mas não fala no memorial.

Em relação às ações de infraestrutura e sinalização, a prefeitura, que é a responsável, informou que aguarda os projetos do Iphan e que tem prazo até 2019.

Peças arqueológicas

Outra preocupação dos especialistas é com as peças arqueológicas resgatadas durante as escavações que redescobriu o porto. Na época, o trabalho foi coordenado pela professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Tânia Andrade de Lima. Entre 2011 e 2012, a equipe vasculhou quarteirões da região portuária para encontrar o cais. Dali, recolheu um dos mais significativos acervos do período escravagista. Resgatou cachimbos, adornos e amuletos, além de anéis usados por crianças africanas. 

Ao fim do trabalho de campo, o material foi entregue à prefeitura que, por falta de verbas, não fez a curadoria e manteve o acervo desabrigado, inacessível por anos, segundo Tânia Lima. Até o fim do ano, a prefeitura promete exibir o material ao público e permitir o acesso a pesquisadores.

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