No museu, objetos pessoais, fotos e documentos exaltam a memória de um importante nome da literatura nacional - FOTOS Armando Paiva / Agência O Dia
No museu, objetos pessoais, fotos e documentos exaltam a memória de um importante nome da literatura nacionalFOTOS Armando Paiva / Agência O Dia
Por FRANCISCO EDSON ALVES

Rio - Cento e dez anos depois de sua morte, Euclides da Cunha terá sua história revisitada mais uma vez. A grandiosidade do escritor não tem limites: engenheiro, imortal da Academia Brasileira de Letras e autor de 'Os Sertões', uma das maiores obras-primas da literatura brasileira. Agora, a Prefeitura de Cantagalo quer assumir a administração do museu que guarda relíquias preciosas do 'imortal' e, assim, preservar a memória do mais ilustre dos cantagalenses. Administrado atualmente pelo governo do estado, o local está abandonado. O sonho dos conterrâneos é ainda ter todos os restos mortais dele, morto em 1909, dentro da casa cultural.

Hoje, as partes do corpo do escritor estão divididas. Curiosamente, apenas o cérebro de Euclides, conservado em formol, está em Cantagalo, dentro de um relicário guardado em um túmulo localizado na Casa-Museu Euclides da Cunha. A ossada se encontra em um mausoléu do município paulista São José do Rio Pardo, onde morou por três anos e escreveu 'Os Sertões', história baseada na Guerra dos Canudos (1896-1897). Na cidade, a 686 quilômetros de Cantagalo, o escritor também é venerado pela população local. Os despojos de Euclides foram separados em 1983, com a exumação do seu corpo, que estava sepultado no Cemitério São João Batista, no Rio.

Praça principal do Centro de Cantagalo, onde está localizado o busto de Euclides da Cunha - Armando Paiva / Agência O Dia

O desejo dos cantagalenses divide opiniões. "Acho justo que um dia os ossos de Euclides sejam trazidos para sua terra natal. Atualmente, ele está esquartejado. Em 1983, aproveitamos que o cérebro de Euclides tinha sido extraído para estudos e conseguimos trazê-lo para Cantagalo", lembra o ex-vereador Desidério Rodrigues, de 76 anos, um dos entusiastas da ideia. "Me parece óbvio isso, já que ele nasceu na Região Serrana", diz a médica Júlia Neder.

"É importante a preservação dos restos mortais, sim, mas a grande preocupação e apreço é o de manter vivo o legado, a memória de Euclides junto ao povo brasileiro. O que é bem feito, por exemplo, por São José do Rio Pardo, em relação não só aos cuidados e proteção da ossada, mas à tradicional Semana Euclidiana, que acontece há mais de cem anos", diz a estudante de Pedagogia da Universidade Federal Fluminense (UFF) Luciana Lage, trineta de Euclides. 

Casa Euclides da Cunha guarda restos mortais de escritor - Armando Paiva / Agência O Dia

Outra polêmica: este mês, o prefeito cantagalense, Joaquim Augusto, solicitou a adoção da administração da Casa-Museu Euclides da Cunha à Fundação Anita Mantuano de Artes, do Estado do Rio de Janeiro (Funarj), e à Secretaria de Estado de Cultura. Sem manutenção adequada por parte do governo estadual desde gestões passadas, o prédio, sem ar-condicionado e com apenas um computador que não funciona por falta de internet, tem somente um servidor lotado (o porteiro). Abriga preciosidades. Lá estão, além do cérebro de Euclides, a primeira edição de 'Os Sertões', cópias de documentos pessoais, roupas e pertences da família de Euclides, como máquinas de escrever e fotográfica. 

Disputa entre duas cidades

Para Ana Paula Lacerda, diretora de Cultura e Curadora da Casa de Cultura Euclides da Cunha, em São José do Rio Pardo, a possibilidade de transferência da ossada de Euclides da Cunha para Cantagalo é "assunto fora de cogitação".

"Aqui, além de termos a Casa de Cultura Euclides da Cunha, que foi residência do escritor, temos o Movimento Euclidiano, que ocorre na cidade há mais de um século, extremamente consolidado, o que levou, inclusive, com o apoio da família, a trazer os restos mortais dele para São José do Rio Pardo", argumenta.

Ana Paula diz considerar tal possibilidade de traslado dos ossos para Cantagalo "algo até desrespeitoso". "Não apenas com a cidade e com a memória de Euclides da Cunha, mas, sim, com a cultura brasileira", afirma, lembrando que a Casa de Cultura, que recebe pesquisadores do mundo inteiro, guarda raridades, tais como: o banquinho e a mesa de madeira rústica que serviram de escrivaninha; um exemplar da primeira edição de 'Os Sertões'; a caderneta de campo com anotações da campanha de Canudos, além de documentos e objetos, como 70 fotos originais do fotógrafo Flávio de Barros, que retratou com ele o conflito de Canudos.

Entre 1898 e 1901, Euclides viveu em São José do Rio Pardo, tempo suficiente para ter um filho, reconstruir uma ponte, escrever 'Os Sertões' nas horas vagas e se tornar uma espécie de filho adotivo da cidade. O casebre de zinco e tábuas onde escrevia é preservado até hoje em uma redoma de vidro. 

Polêmica na Festa de Paraty

A disputa entre Cantagalo e São José do Rio Pardo deve alimentar ainda mais as discussões da próxima Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em julho, ocasião em que Euclides da Cunha será homenageado. É mais uma polêmica entre tantas envolvendo o autor de 'Os Sertões'.

A filha de Manoel Affonso Cunha, Maria Auxiliadora da Cunha Lage, de 89 anos, única neta de Euclides ainda viva, lamenta, por exemplo, que, com a minissérie 'Desejo', exibida em 1990 pela Globo, o destaque para o grande público tenha sido a traição da esposa do escritor, Anna, "e não de toda sua genialidade, do progresso e o desenvolvimento do Brasil com sua influência". Euclides acabou morto a tiros pelo amante de Anna, Dilermando de Assis.

Maria Auxiliadora da Cunha Lage, 89, neta do escritor com bisnetas e trineta - Álbum de família

"Sou grata a Joel Bicalho Tostes, marido de minha irmã Eliethe (morto em 2009, autor do livro 'Águas de Amargura: o drama de Euclides e Anna'), por sua atuação no movimento euclidiano e que se esforçou bastante para a manutenção da correta memória de Euclides. E tenho muita gratidão por todos que ainda lutam pela tradição euclidiana" diz Maria. 

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