Publicado 21/07/2019 03:00 | Atualizado 21/07/2019 10:57
Sentada em uma esquina de Copacabana, Sandra Maria de Alencar, de 52 anos, usa o capuz do moletom para se esconder da câmera de reconhecimento facial instalada para procurar foragidos, mesmo sem dever nada à Justiça. O receio é justificado: no dia 9 deste mês ela foi levada para a delegacia do bairro, dentro de uma viatura da PM, após ser apontada pelo sistema como uma homicida, como O DIA revelou com exclusividade na edição de 10 de julho.
Na ocasião, ela trabalhava segurando uma placa de propaganda de venda de joias. “Estava sem identidade. Um dos policias falou: ‘Você vai ter que ir para a delegacia’. Minha filha estava trazendo o documento, mas eles não quiseram esperar”, contou Sandra.
Apesar de o sistema de reconhecimento facial já ter ajudado a Polícia Militar a prender oito foragidos, o caso de Sandra é um dos efeitos colaterais da nova tecnologia, que já recebe críticas de moradores e também de autoridades da Justiça. O coordenador de Defesa Criminal da Defensoria Pública, Emanuel Queiroz, disse que cabe ação de Sandra contra o Estado por danos morais. E analisou: “A ação de levar uma pessoa para averiguar sua identidade na delegacia remonta a tempos imemoriais, não cabendo em um Estado Democrático de Direito”.
Ainda em fase de testes, a Polícia Militar não divulga qual o protocolo adotado para o uso do sistema, assim como o conteúdo do convênio firmado, gratuitamente, com a Oi. Já a empresa não quis responder se, em contrapartida, está ou não armazenando dados privados das pessoas que são filmadas pelas 25 câmeras, por 24 horas, desde o dia 8 de julho, em Copacabana e no Maracanã.
“Por se tratar de privacidade, de intimidade, de imagens do cidadão, o reconhecimento facial é um tipo de contratação extremamente delicado e que deveria ter sido dada transparência a isso, com base na Lei Geral de Proteção de Dados, a LGPD”, afirmou Gisele Truzzi, advogada especialista em Direito Digital. A LGPD, que entrará em vigor em agosto de 2020, pretende proteger dados sensíveis, como o de imagens faciais.
A tecnologia apelidada de ‘Big Brother da PM’ é da empresa chinesa Huawei. Na China, o sistema é capaz de reconhecer até números parciais das placas de carros (se um policial digitar uma letra e o número 10, por exemplo, todas as placas com essa combinação irão aparecer). Além disso, é possível saber quantas vezes um automóvel ou uma pessoa visitou um local vigiado, com um histórico de tempo indeterminado, pois as imagens ficam armazenadas. Também é viável identificar até alguém usando máscara, porque a tecnologia usada reconhece a forma de andar e gesticular de um indivíduo e cataloga todas essas informações.
Por conta disso, Jasper Rhode, sócio de uma empresa de soluções tecnológicas, afirma que em países onde o sistema já funciona houve um esvaziamento de manifestantes em passeatas. “Há um medo de ficarem marcados pela polícia”, disse. Ainda segundo Rhode, a probabilidade de falsos positivos, ou seja, de o sistema identificar de forma errada uma pessoa, é maior com pessoas negras.
A cidade de São Francisco, nos Estados Unidos, proibiu o uso do sistema pela polícia, em maio. Grupos de defesa das liberdades civis definiram a tecnologia como "incompatível com uma democracia saudável".
MP: ‘sem protocolo, situação é irregular'
MP: ‘sem protocolo, situação é irregular'
O fato de a Polícia Militar não ter divulgado o protocolo para instalação das câmeras, assim como não publicar no Diário Oficial o convênio, causou estranheza na promotora Cláudia Turner, do Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública do Ministério Público. Ela ressaltou que um Termo de Ajuste e Conduta (TAC) de 2015 estabeleceu que "toda atuação da PM deveria ter publicidade e ser respaldada em protocolos". "O Estado atua pelo princípio da legalidade estrita, isto é, somente faz o previsto em lei. Sem protocolos, a situação é irregular", disse.
Desde que a Polícia Militar começou a usar o reconhecimento facial, o Ministério Público do Rio já recebeu questionamentos da população a respeito do sistema. Uma das indagações foi enviada para a Promotoria de Tutela Coletiva da Cidadania, que acompanha o desenrolar da instalação da tecnologia.
O constrangimento de ser levada a uma delegacia
À reportagem do DIA, Sandra Maria de Alencar relembrou a angústia de ficar quase duas horas privada de sua liberdade, ao ser levada para averiguar a identidade na delegacia, em Copacabana. Agora, ela pretende processar o Estado pelo constrangimento que passou por causa do erro do reconhecimento facial. “Os policiais não me deixaram nem guardar a placa do meu trabalho. Se esperassem dez minutos, minha filha chegaria com a identidade”, disse a propagandista.
Moradora do Pavão-Pavãozinho, a cearense da cidade de São Benedito chegou ao Rio há cinco anos, na esperança de conseguir emprego. "Deixei dois filhos no Ceará e moro sozinha com o meu filho de 15 anos. Por acaso, minha filha veio me visitar com o meu neto de 1 ano e 5 meses, Ítalo Gabriel. Se não fosse ela levar a identidade, acho que teria sido presa", desabafou.
Filha de Sandra, Irla Andrade, 23, disse que, ao receber a ligação da mãe, correu para a delegacia: "Fiz um mingau para o meu filho e desci o morro. Cheguei chorando muito na delegacia com o documento".
Após ter sido constatado que ela não era a procurada, de nome Maria Leda Félix, Sandra foi liberada. "A viatura me deixou de volta na esquina onde trabalho. Todos ficaram comentando que eu fui presa. Fiquei com medo de perder o emprego".
A PM disse que "assim que o sistema aponta 70% de possibilidade de a pessoa ser a procurada, uma viatura é direcionada ao local". A Secretaria de Polícia Militar lamentou o erro ocorrido com Sandra.
Moradores com dúvidas
Adilson Dario, 52 anos: Trabalhando em uma sexy shop, na esquina da Rua Santa Clara, em Copacabana, Dario disse que se preocupa com a câmera de reconhecimento instalada na frente do estabelecimento. “Se esse equipamento for capaz de reconhecer qualquer um e obter seus dados, a pessoa que opera pode usar isso para fazer chantagem com algum cliente”, opinou.
Sandra ReginaGonçalves, 66 anos: Moradora de um apartamento da Avenida Nossa Senhora de Copacabana, Sandra Regina disse que sofre preconceito no bairro por ser negra. E se preocupa com a margem de erro do sistema de reconhecimento. “Sempre que estou com amigas brancas, acham que eu sou a empregada. Tenho medo de ser presa por esse sistema só por ser negra”, desabafou.
Renato Keller, 65 anos: O engenheiro civil Renato Keller, que caminhava pelo calçadão da orla de Copacabana, um dos locais com câmeras de vigilância, disse que já soube da proibição do sistema de reconhecimento facial em outros países. “Desconheço no Brasil a sua abrangência e suas implicações para a nossa privacidade. Mas gostaria bastante de saber mais sobre o assunto”.
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