Publicado 12/02/2020 09:00 | Atualizado 13/02/2020 16:50
Rio - Após diversas denúncias de fraudes no sistema de cotas das universidades públicas do país, a história parece ganhar um novo enredo. Alunos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) denunciam ao O DIA, nesta terça-feira, um caso de racismo ocorrido no campus Fundão, na Ilha do Governador. Segundo relatos, Julia Rios da Silva, de 22 anos, teria perdido sua vaga após a Comissão de Heteroidentificação da instituição – que avalia o fenótipo dos candidatos (características físicas) que tentam ingressar por cotas – declarar a jovem como "não apta" a usufruir da vaga destinada para candidatos autodeclarados pretos ou pardos.
"Eu passei o dia inteiro na universidade, perdi o meu dia de trabalho. Foi uma situação muito humilhante, eles colocaram (a etnia) na condição da opinião de outras pessoas. Eu sou parda, tenho embasamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Então tudo que eu aprendi sobre mim até hoje é mentira? Eles dizem que não sou o que eu cresci achando que era. Não sei o que fazer. É o meu direito", desabafou a jovem.
De acordo com um estudante, que não quis se identificar por medo de retaliações, o episódio é novidade e consequência da implementação da comissão reguladora. "Estou aqui na UFRJ há três anos e nunca tinha visto algo tão absurdo. Eu tenho o mesmo fenótipo que ela, entrei por meio de cota e não passei por isso. Ela aparentemente perdeu a vaga por conta dessa comissão, é o primeiro ano que isso está sendo implementado. Ela tem um black gigante, é filha de um homem negro, você olha e vê que é afrodescendente".
O estudante ainda completou dizendo que "apesar de todo absurdo que já tinha acontecido", o ápice foi um outro candidato aprovado debochar da jovem. "O pior foi quando um menino branco, que tinha sido aprovado pela comissão, sair rindo e falar para ela: 'eu consegui e você não'. Nesse momento, ela começou a se questionar. O que essa comissão faz é absurdo. É uma galera despreparada, composta por alunos, professores e técnicos administrativos. Fazem um terror psicológico gigantesco".
Para outra aluna, que também não quis se identificar, falta comunicação dentro da própria universidade sobre o sistema de cotas e treinamento dos avaliadores. "Os avaliadores estão debochando, não têm postura para integrar o grupo. A pessoa lê a autodeclaração para uma câmera e eles ficam debochando, rindo. Não foi a primeira vez, aconteceu o mesmo ontem".
Embora ainda sem solução definitiva, o episódio ficará marcado para sempre e Julia promete recorrer. "Eu não sei mais nem se eu posso usar esse termo (parda). Dizem que não sou branca mas que também não sou preta. Eu me senti diminuída, senti que minha etnia foi negada. Minha autodeclaração foi ridicularizada. E me senti humilhada assistindo outros candidatos da minha cor serem considerados "aptos" e eu "não apta". Eu não sei o que fazer, mas vou recorrer. Eu estudei mais de um ano, abdiquei de tanta coisa pelo sonho de ingressar numa faculdade pública. Além de não ter condições financeiras para pagar uma faculdade. Foi um pesadelo", Finalizou.
Procurado pelo DIA, a UFRJ informou que a candidata fez uma denúncia por escrito às 19h20 desta terça ao presidente da Comissão de Heteroidentificação e que o caso será encaminhado para a Pró-Reitoria de Graduação da universidade.
Inicialmente, a entidade havia apenas reforçado como funciona o procedimento de heteroidentificação para acesso aos cursos por meio de cotas e dito que o mesmo é "útil para coibir as fraudes no sistema de cotas e legitimar o acesso à graduação daqueles que, de fato, são pretos e pardos"; confira a íntegra do primeiro posicionamento:
Esclarecemos que:
1. O procedimento de heteroidentificação para o acesso aos cursos de graduação da UFRJ 2020 é normatizado pelo Edital nº 36, de 5/2/2020, disponível para acesso público em https://acessograduacao.ufrj.br/processos/2020-1/acesso-2020/editais-acesso-2020/2020-Edital_36-2020-HeteroIdentficacao.pdf. É importante a leitura do edital.
2. O procedimento de heteroidentificação é filmado e consiste em uma entrevista simples na qual o candidato apresenta as razões que o levam a se declarar como pessoa preta ou parda. A Comissão de Heteroidentificação utiliza exclusivamente o critério fenotípico (características físicas) para aferição da condição declarada pelo candidato.
2. O procedimento de heteroidentificação é filmado e consiste em uma entrevista simples na qual o candidato apresenta as razões que o levam a se declarar como pessoa preta ou parda. A Comissão de Heteroidentificação utiliza exclusivamente o critério fenotípico (características físicas) para aferição da condição declarada pelo candidato.
3. O procedimento de heteroidentificação é útil para coibir as fraudes no sistema de cotas e legitimar o acesso à graduação daqueles que, de fato, são pretos e pardos.
4. Caso seja considerado "não apto", o candidato pode, caso queira, solicitar interposição de recurso contra o resultado e, assim, é submetido a uma nova análise por uma comissão recursal de heteroidentificação. Os membros dessa comissão recursal são diferentes dos da comissão que fez a primeira verificação do candidato.
5. A UFRJ, vanguarda na educação superior brasileira, é comprometida com os princípios da administração pública federal, entre eles a legalidade.
4. Caso seja considerado "não apto", o candidato pode, caso queira, solicitar interposição de recurso contra o resultado e, assim, é submetido a uma nova análise por uma comissão recursal de heteroidentificação. Os membros dessa comissão recursal são diferentes dos da comissão que fez a primeira verificação do candidato.
5. A UFRJ, vanguarda na educação superior brasileira, é comprometida com os princípios da administração pública federal, entre eles a legalidade.