Voluntários da Frente de Mobilização da Maré distribuem alimentos para os moradoresPATRICK MENDES/Divulgação
Por Yuri Eiras e Luana Benedito*
Publicado 15/06/2020 05:00
Rio - Um coronavírus com nariz pontudo e olhar de vilão encara quem passa pela Baixa do Sapateiro, uma das 16 favelas que formam o Complexo da Maré, na Zona Norte do Rio. No graffiti da parede, os números de contaminados no Brasil e no estado são atualizados diariamente. Tem sido assim desde março, quando, ao primeiro sinal da chegada da covid-19 no país, mais de 100 moradores da região se organizaram na Frente de Mobilização, coletivo que tem espalhado pelas ruas as notícias sobre a pandemia de covid-19. A intenção é orientar aqueles que, por falta de tempo ou dinheiro, não têm acesso a sites ou canais pagos de notícias.

"Pensamos em um plano de comunicação que atingisse a favela, já que não é todo mundo que têm acesso à Internet, televisão ou mesmo energia elétrica. Pensamos em comunicar por graffiti, carro de som, faixas, cartazes. Pensamos formato, linguagem e necessidade. O público-alvo somos nós mesmos", explica Gizele Martins, comunicadora comunitária da Maré e uma das líderes da Frente de Mobilização. É dela a voz firme que anuncia no carro de som: "Atenção, Maré: o coronavírus não é uma gripe. Não é tempo de fazer churrasco ou festinhas".
 
Coronavírus no muro da Baixa do SapateiroDIVULGAÇÃO/FRENTE DE MOBILIZAÇÃO DA MARÉ
Publicidade
A Maré se tornou, em maio, a favela do Rio com mais óbitos confirmados por covid-19. São 67 mortes e 253 casos, segundo dados da Prefeitura. O número pode ser maior, já que o Rio é uma das capitais que menos testa. "O município não montou pólos, principalmente nas comunidades, para o atendimento sintomático. Os pacientes que têm sintomas de gripe se misturam na sala de emergência, provocando uma contaminação cruzada, o que certamente vai aumentar muito a taxa de letalidade da doença. As pessoas que têm outras doenças estão pegando covid-19 nas unidades de atenção primária", explica o médico Daniel Soranz, infectologista da Fiocruz e ex-secretário de Saúde do Rio.
O tamanho da população local é a chave para entender o porquê da propagação do vírus estar maior na Maré do que em outras favelas. São cinco quilômetros de casas aglutinadas e cerca de 140 mil habitantes - quase dois Maracanãs lotados. Mais gente que a Rocinha (100 mil) e o Complexo do Alemão (70 mil), de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Entretanto, na relação de óbitos por número de habitantes, a Maré passa longe de ser o epicentro. A Cidade de Deus, com 38 mil habitantes, soma 33 óbitos, uma taxa de letalidade maior.
Coletivos também fez distribuição de gásPATRICK MENDES
Publicidade
Vizinha da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), principal instituição de estudos de infectologia e saúde pública do Brasil, a favela cresceu à margem da Baía de Guanabara e se tornou um gigante com cor de tijolos. Em 1994, ganhou status de bairro oficial, mas o desenvolvimento local não progrediu. Nas moradias mais próximas ao manguezal da Baía, não há saneamento básico. Muita gente, pouco espaço e nenhuma ação urbana do poder público. Cenário ideal para um vírus se alastrar feito fogo em gasolina.

"Infelizmente, o isolamento de quem fica doente na favela é diferente; a dinâmica da casa é muito diferente. Aqui você tem famílias de 10 pessoas morando em dois cômodos", explica Flávia Cândido, 38 anos, nascida na Maré e moradora do Conjunto Esperança, próximo da Avenida Brasil. Para Flávia, sem o investimento na comunicação, o estrago poderia ser pior. "O trabalho da Frente de Mobilização da Maré é muito importante. Quando o carro de som passa e fala que a covid-19 mata, que agora o vírus atinge o vizinho, o amigo, o parente, as pessoas começam a entender melhor".
Coletivo pintou em um muro da comunidade os números da pandemia no BrasilPATRICK MENDES
O carro de som, os cartazes e as faixas são uma tentativa de orientar a população da Maré em meio às vozes dissonantes das autoridades fluminenses. No dia 1º de junho, o prefeito Marcelo Crivella anunciou a reabertura gradual do comércio. A Justiça barrou dias depois, mas o município, em liminar, conseguiu reverter a decisão. O governador Wilson Witzel liberou parte do comércio, inclusive os shoppings, em horário alternativo. No âmbito federal, os discursos do presidente Jair Bolsonaro confrontam os dos especialistas. O país está sem ministro da Saúde há um mês. A impressão de Diego Reis, 23, morador do Parque Rubens Vaz, é de que, por fruto dessa confusão, "as coisas estão muito normalizadas". "Há muito comércio em funcionamento, há bastante trânsito de pessoas aqui nas ruas, ou seja, as pessoas não estão respeitando o isolamento social".

Na Maré, ‘quem tem água, divide com quem não tem’
Publicidade
Dados do IBGE do ano passado indicam que, dos 2,3 milhões de casas na cidade do Rio, 453 mil, ou 19%, estão nas favelas. A ocupação é crescente. Na Maré, deu-se na década de 1960, quando moradores de morros da Zona Sul foram despejados e realocados na região. As experiências de embate com o poder público daquela época contribuíram para que os habitantes construíssem uma rede de auto-organização mais vigorosa do que centenas de outras favelas cariocas, ainda dependentes do sistema de associações de moradores. "Hoje, concretamente, nós temos uma geração mareense que conseguiu adentrar à graduação, à universidade pública. Hoje, a Maré já colhe seus frutos, o que é não é realidade ainda em outras favelas. Temos uma geração de mestres, doutores, pós-doutores e são esses mesmos moradores que combatem a pandemia", explica a deputada estadual Renata Souza (PSOL), criada na Maré e fruto dos projetos educacionais locais.
A Frente de Mobilização, criada em 19 de março, é um aglomerado de 13 coletivos que previam um desastre caso o vírus chegasse nas favelas cariocas. Por isso, além da divulgação de informações, o grupo investiu na distribuição de cestas básicas, água e itens de higiene. "Quando a notícia da recomendação de distanciamento social saiu na tevê, a gente começou a perceber que a linguagem utilizada não atingia a realidade dos moradores. Uma das principais recomendações de conter a transmissão é lavar as mãos, e a realidade da favela é que muitos não têm abastecimento de água. Pensamos em como, na nossa comunicação, abranger essa necessidade", conta Gizele Martins. "Pautamos também a solidariedade entre nós. Quem tem água divide com quem não tem; quem não tem, pede".
Frente de Mobilização da Maré distribui alimentos aos moradoresPATRICK MENDES
Publicidade
Tatiane Lima e seu filho de 13 anos, moradores da Nova Holanda, receberam cestas básicas dos coletivos. Ela é dona de uma lanchonete inaugurada durante a pandemia, o que prejudicou a renda familiar. “O movimento do comércio não é bom, mas as ONGs tem abençoado muito nossa vida com cestas básicas. Estão fazendo um trabalho incrível. Ajuda para o grosso do dia a dia: o arroz, o feijão”, diz Tati.
As ações de comunicação realizadas pela Frente de Mobilização foram replicadas, espontaneamente, em outras favelas do Rio. No Jardim Maravilha, em Guaratiba, um caro de som tem alertado a população sobre o alto índice de contaminação na Zona Oeste carioca. Cartazes também foram espalhados nos comércios. No Complexo do Alemão, o Coletivo Papo Reto brincou com as fake news relacionadas à cura da covid-19 por soluções naturais, como a de que o enxofre encontrado no alho cru espantaria o vírus. "Atenção! Descobriram a planta que vai acabar com o coronavírus: 'planta' a bunda no sofá e fica em casa!"
Publicidade
*Este artigo faz parte da série de publicações resultado da Bolsa de Jornalismo de Soluções 2020, executada com apoio da Fundación Gabo, Solutions Journalism Network e Tinker Foundation.