Publicado 27/11/2020 19:14
Rio - A imagem da ocupação do Complexo do Alemão, que neste sábado completa dez anos, rodou o mundo e trouxe, inicialmente, um ar de esperança aos milhares de moradores do conjunto de favelas na Zona Norte do Rio que não suportavam mais a enorme negligência do Estado. Enfim, os olhos das autoridades pareciam ter se voltado para a região. No entanto, tal panorama durou muito pouco.
Cria do Complexo do Alemão e atualmente morando em Suzano (SP), o engenheiro mecânico Lucas Lima, 25 anos, criador da impressora 3D feita com sucata de ferro-velho e vencedor de inúmeros prêmios, diz que não mudou muita coisa nessa década que se passou.
"Muitas pessoas falam na comunidade que a UPP era uma máscara que o Estado fez para encobrir a violência e mostrar que o Estado está presente aqui. Só que nós, que somos moradores, sempre sabemos que o Estado é omisso para quem mora dentro das favelas", desabafa indignado.
Gestora de RH e empreendedora social, Joelma Alcântara, 34 anos, é morada do Complexo do Alemão e fundadora da Jojô Serviços, voltada para a inserção de outros moradores da região no mercado de trabalho.
"Mudou para pior, porque muitos projetos sociais, cursos gratuitos, cinema, o lazer como o próprio teleférico que ajudava muitos moradores infelizmente não existem mais, então a cada ano que passa só vivenciamos perdas. De alguma forma a gente tinha esperança que as oportunidades iriam melhorar para as nossas crianças e Jovens e hoje os sonhos ficaram despedaçados pelo caminho", conta a vencedora do Prêmio Dandara 2020.
Quando questionada sobre como ela vislumbra o futuro do Complexo do Alemão nos próximos dez anos, Joelma tem um discurso desolador. "Acho que nada vai mudar. Não vejo força de vontade das políticas públicas que têm o poder nas mãos de querer mudar a nossa realidade", confessa.
10 ANOS DE OCUPAÇÃO: ESPECIALISTAS ANALISAM
Para a cientista social Silvia Ramos, o balanço desses dez anos da ocupação por forças policiais e militares é "extremamente negativo". "Temos ali, a experiência de um fracasso de um projeto em que houve muito investimento policial e militar. E investimento e o abandono em políticas sociais, como mobilidade, o teleférico, as bibliotecas e abandono também das relações entre moradores e polícia. É o perfeito modelo de uma coisa que não dá certo e que não deve ser repetida", destaca ela, que é coordenadora da Rede de Observadores de Segurança do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC).
Já o professor da Uerj e especialista em Segurança Pública, José Augusto Rodrigues, é preciso recontextualizar o que aconteceu no Alemão. "O projeto das UPPs era um projeto desafiador e inteligente. A ideia era abordar uma polícia que praticasse o policiamento de proximidade. O conceito da coisa é esse. O ponto de ruptura toda é a morte do Amarildo Dias de Souza, em julho de 2013. Nenhum projeto de polícia pacificadora de policiamento comunitário poderia ser implementado em um lugar onde você tivesse a presença ostensiva de grupos armados dominando o território. O projeto das UPPs não era relacionado ao combate de tráfico de drogas", frisa Rodrigues.
"Qualquer projeto de combate ao tráfico de drogas é um projeto que já nasce fadado ao fracasso porque já se tentou de tudo e nada resolve. Daqui a 10, 15, 20 anos, alguém vai jogar a toalha, esse troço não tem jeito. Então, o projeto das UPPs não era relacionado ao combate ao tráfico de drogas, era um projeto de repactuação do relacionamento entre as forças policiais e as classes populares das favelas e periferias", acrescenta.
De acordo com Jacqueline Muniz, especialista de Segurança Pública, o programa de polícia de proximidade foi "sabotado por dentro do próprio governo com sua ambição eleitoreira". "Não havia, não há e nunca teriam recursos possíveis para tanta UPP. E não é preciso tanto gasto para produzir o resultado do controle do crime convencional e organizado", explica ela, que é professora do Departamento de Segurança Pública da UFF.
"Não se tem como produzir gestão territorial só com PM, fazendo o papel de guarda de condomínio de favela. Era preciso um trabalho conjunto com as demais polícias, Guarda Municipal, Corpo de Bombeiros e, principalmente, a subprefeitura e a administração regional com um programa de longo prazo e em larga escala de provimento de serviços e bens essenciais a baixo custo para a população, como luz, água, internet, regularização fundiária, transporte, urbanização", detalha a docente.
Silvia Ramos continua: "É preciso ter coragem nesse momento de reconhecer o que não funcionou e de identificar os erros. Tem que entender que, para controlar grupos armados, sejam eles milícias ou traficantes, é preciso utilizar inteligência, investigação, criação de relações de confiança com os moradores, e não relações de ódio, ocupação militar, tiroteios e confrontos".
A FORÇA DA COMUNIDADE
Lima afirma que, enquanto para as autoridades, o Complexo do Alemão é uma estatística de violência, para quem é de lá, o local é uma potência. "A situação hoje no Alemão é crítica. A gente vê com o coronavírus. Se não fossem os movimentos voluntários, como o meu, que distribuiu protetor facial, o do Rene Silva, como o da Educap, como o do Raul Santiago, a comunidade ia ficar como? Esses movimentos de voluntários é que firmaram real significado de comunidade", afirma o engenheiro. "Mostrou que a gente não precisa dos caras engravatados do Palácio Guanabara ou do Palácio do Planalto para que o povo da favela fosse protegido. Nós somos a questão real de comunidade, somos a resposta, a potência", completa.
Quando se fala em futuro, não dá para ignorar o passado. Assim, a cientista social Silvia faz uma previsão de como deveriam ser os próximos dez anos do Complexo do Alemão. "Olhando para essa experiência fracassada, os próximos dez anos estão muito mais relacionados à mais investimentos em saúde em educação, cultura, habitação, mobilidade, e menos investimento em policia, numero de tropas, blindados, helicópteros e megaoperações. Esse modelo policial é um modelo que não dá certo. Falar hoje em ocupação de novas comunidades é um contrassenso", defende ela.
TRANSFORMAR A FAVELA EM WAKANDA
Lima é confiante de que a realidade do Complexo do Alemão de 28 de novembro de 2030 será melhor do que a de agora. "Temos outras gerações. Acredito que daqui a dez anos podemos transformar a favela em Wakanda - fictício país africano fortemente tecnológico, que ficou popularizado no filme ‘Pantera Negra’ (2018). Acredito que o jovem preto e favelado pode desenvolver tecnologia para melhorar o local onde ele mora", sacramenta o engenheiro.
"Claro, se se houver investimento em educação ou se projetos sociais quiserem implementar cursos de educação tecnológica em favelas. Nós temos pessoal com potencial criativo acima do normal dentro das nossas comunidades, onde com uma oportunidade vamos transformá-los em verdadeiros reinos", destaca.
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