Ana Paula Ambrósio, mãe de Fernando Ambrósio. O menino ganhou uma pintura em sua homenagemReprodução
Publicado 20/12/2021 00:00 | Atualizado 20/12/2021 15:05
Rio- Rodrigo Tavares, 19 anos, Vitor de Oliveira, 18 anos, Victor Hugo de Jesus, 17 anos, e Fernando Moraes, 14 anos. O que eles têm em comum? Todos foram mortos em situações de extrema violência. Nenhum deles tiverem seus assassinados responsabilizados. Nenhum deles teve justiça feita. Histórias que aconteceram na Baixada Fluminense, umas das regiões mais violentas do Rio, e que anos depois ainda não tiveram solução. As famílias, ainda aguardam por uma resposta que parece nunca vir. 
O sofrimento e busca por justiça fez nascer a Rede de Mães e Familiares de Vítimas da Violência do Estado na Baixada Fluminense, que atualmente alcança cerca de 250 famílias. É deste grupo que fez da dor da perda uma luta, que a reportagem conta histórias reais de quem espera por justiça. 

Há seis anos a historiadora Nívia Raposo viu o filho Rodrigo Tavares, de 19 anos ser morto na porta de casa, na Rua Morro Agudo, em Santa Eugênia, Nova Iguaçu. O jovem iniciava a carreira no Exército. Segundo a mãe, uma semana antes de morrer, um homem abordou o militar, o acusando de roubar no bairro e o cobrou R$ 500 por semana. Este homem o ameaçou, caso ele não pagasse, mas Rodrigo não deu importância. Uma semana depois, foi morto com seis tiros.
Ainda sem reposta para o crime, Nívia destaca o processo de desumanização que acontece quando as mães buscam por justiça na Baixada Fluminense.

"No momento que entramos na delegacia para fazer o B.O. as perguntas já são tendenciosas. Acredito que na cabeça desse servidor todos esses jovens pretos e pobres são culpados até que se prove o contrário. A presunção da inocência é seletiva. Os moradores da Baixada carregam um estigma pesado, com muitos marcadores sociais: os três Ps (ser preto, pobre e periféricos) nos tornam  sujeitos matáveis. Somos aqueles que o Estado sempre tentou esconder. Isso explica nosso genocídio".

Ela ressalta que quando os casos são esquecidos ninguém é responsabilizado. "Muitos casos são esquecidos porque o apagamento é uma arma eficaz do Estado. Juntando ao racismo institucional e estrutural, o esquecimento é a arma perfeita. Um dos motivos que me fazem lutar a cada dia. Penso que não existe interesse em investigar essas mortes porque o Estado jamais assumiria essa culpabilidade".
Baixo índice de resolução
De acordo com a pesquisa 'Onde Mora a Impunidade', do Instituto Sou da Paz, apenas 14% dos assassinatos ocorridos em 2018 no Rio de Janeiro foram esclarecidos. Para quem perdeu um familiar, a demora em receber respostas aumenta ainda mais a dor. É o caso de Ilsimar de Jesus, mãe de Victor Hugo de Jesus, de 17 anos, morto em uma ação policial em 2018, junto com o amigo Vitor Oliveira, de 18 anos, em São João de Meriti, na Baixada Fluminense.
Os dois jovens estavam em uma moto e não teriam obedecido a uma ordem da polícia para parar. Houve perseguição e o carro da polícia encostou na moto e derrubou os garotos. Testemunhas afirmam que mesmo rendidos e deitados no chão o policial efetuou os disparos e ambos morreram.

"Desde que aconteceu o crime a gente vem na luta. Uma luta incansável e dolorosa em busca de justiça e até agora não tivemos uma resposta. O que me dizem é que as coisas estão lentas por conta da pandemia. É sempre uma eterna espera. O tempo está se passando e cada vez fica mais difícil resolver o caso, porque quanto mais o tempo passa fica mais difícil de captar provas. Infelizmente, estamos até hoje, três anos e seis meses e o caso ainda nem virou processo. Isso é um absurdo. Não sabemos nada concreto, nem aonde está o inquérito", conta Ilsimar.
Ela diz ainda que na periferia as pessoas sofrem com o descaso e recebem tratamento diferente.

"Estamos reféns de uma justiça que não olha para preto, pobre e favelado, esta é a verdade que a gente vive. O lugar que a gente mora determina como somos tratados, infelizmente. A polícia criminaliza as famílias daqueles que eles abatem como se fossem animais. Chega, atira e não pergunta quem é. Ainda me pergunto porque tiraram o meu filho. Por que não o abordaram e pediram identificação dele? É este o tratamento que a gente tem na periferia. O Estado não olha pelas famílias que ele próprio destruiu, não reconhece suas falhas".

A mãe de Vitor, Elisabete de Oliveira contou que os rapazes estavam caídos no chão e os policiais atiraram mesmo depois que eles se identificaram como morador.

“Estava ele e o Victor. Ele estava na garupa, mas a moto era dele mesmo. A polícia bateu na moto, eles se desiquilibraram e caíram. Os meninos ainda gritaram dizendo que eram morador do bairro. O policial atirou neles mesmo depois que eles estavam caídos. O caso está totalmente parado”, conta.

Elisabete disse que o policial alegou, em depoimento, que o tiro foi acidental. Ainda segundo ela, o filho estava fazendo o processo para tirar a habilitação e não obedeceu a ordem de parada para não perder a moto.

“Na delegacia, o policial confirmou que ele tinha dado um tiro, mas tinha sido acidental. Foram dois disparos que foram dados, então não pode ter sido acidental. O MP pediu um novo perito e foi provado que um tiro só não mataria os dois”.
A Defensoria do Rio de Janeiro informou que o Núcleo de Defesa de Direitos Humanos (NUDEDH) atende os familiares de Vitor de Oliveira Souza, morto pela PM, em São João de Meriti.  
"Os rapazes estavam numa moto e não atenderam a ordem de parar. Um dos policiais teria feita um único disparo de arma de fogo que teria atingido os dois rapazes, levando-os à morte. Contudo, o laudo produzido pelo perito do Ministério Público concluiu que os rapazes foram mortos por disparos diferentes, o que coaduna com as testemunhas ouvidas que presenciaram as execuções".
A Defensoria afirmou que a versão do policial não seria possível e que pediu uma reprodução simulada do caso, mas, até o momento, não houve nenhuma resposta.
"A Defensoria pediu a reprodução simulada, mas, até o presente momento, não há informação se a mesma será realizada. Importante esclarecer que cabe ao MP o controle externo da polícia e inclusive sobre os inquéritos policiais".
Quatros anos de dor 

Era dia 23 de outubro de 2017, quando Ana Paulo Ambrósio encontrou o filho, de 15 anos, caído no quintal de casa, na Rua da Paz, no bairro São Jorge, em Japeri. Ela voltava da padaria e tinha ficado fora de casa por apenas dez minutos. O adolescente Fernando Moraes foi morto enquanto ocorria um confronto entre policiais do Batalhão de Operações Especiais (BOPE) e bandidos. O crime até hoje permanece sem solução.

"Os policiais invadiram o meu quintal e disseram que tinha bandido lá. Alguns estavam no quarto jogando tudo no chão. E outro policial estava ao lado do meu filho, que estava estirado no chão com dois tiros. Ele não era envolvido com nada errado. A rotina dele era de casa para a escola", relembra.

Ao avistar o filho caído, Ana Paula foi ao encontro dele e os policiais ainda teriam tentado impedi-la por achar se tratar de um bandido. Ao se darem conta de que se tratava de um adolescente que morava no local, permitiram que ela se aproximasse, mas não socorreram o garoto. Os agentes não apresentaram a ocorrência à Polícia Civil. Na 48ª DP (Seropédica) registraram apenas um confronto com dois suspeitos baleados, com quem foram apreendidos duas pistolas, um revólver e uma granada. O inquérito sobre a morte de Fernando só foi aberto dias depois, por parentes do menino.

"Até a data de hoje, não vimos a justiça ser feita. Quaro anos se passaram e nada. Isso dói muito. Meu filho foi executado covardemente. Moradores viram o momento que eles entraram lá. Quem deveria nos proteger é quem nos mata. A promotoria na época disse que não tinha como provar que a morte foi culpa da polícia. Às vezes a gente perde a esperança na justiça dos homens", desabafa Ana Paula. 
Procurados, o Ministério Público, a Polícia Civil não se manifestaram.


Casos de violência crescem
Segundo o Boletim do Fórum Grita Baixada, de janeiro a outubro de 2021 a Baixada Fluminense registrou 972 tiroteios, com 284 mortos e 180 feridos. Somente em outubro, foram 68 confrontos registrados.  Em novembro a região teve 65 tiroteios, 25 mortos e 16 feridos.
No primeiro semestre a região registrou 12 chacinas em 2021, uma média de duas a cada mês. O número de mortos chegou a 49, quando no ano anterior, no mesmo período, foram registradas seis mortes.
"Isso acontece porque há uma negligência e um desprezo generalizado pela vida dos pobres. A Baixada Fluminense, assim como outras áreas periféricas, é uma região essencialmente negra e empobrecida. São as pessoas negras as que mais aparecem nas estatísticas das vítimas da violência policial, de prisões arbitrárias, dos homicídios dolosos, dos casos de desaparecimento forçado e boa parte deles sem investigações concluídas e sem responsabilização dos autores", diz Adriano Araujo, coordenador do Fórum Grita Baixada.
A fundadora da Rede de Mães e Familiares de Vítimas da Violência da Baixada Fluminense, Luciene Silva, afirma que a região tem suas especificidades. "Aqui temos milicianos, tráfico, exterminadores, tudo no mesmo território, fora o descaso do Estado".

Amparo à vítimas da violência

Na última semana, algumas iniciativas sinalizaram conquistas no que diz respeito a assistência das vítimas e familiares e no combate da violência. A Prefeitura de Nova Iguaçu lançou o Núcleo de Atendimento Municipal a Vítimas de Violência de Estado e seus Familiares (NAMVIF), onde será realizado acompanhamento de psicólogos e assistentes sociais, grupos de reflexão e de apoio. O atendimento será feito na Rua Terezinha Pinto 297, Centro de Nova Iguaçu, de segunda a sexta-feira, das 9h às 17h.
Já a Alerj vai criar o Comitê de Prevenção de Homicídios na Adolescência. O objetivo é monitorar as mortes violentas dos jovens no estado, que, segundo a Unicef, de 2011 a 2020 chegou a 3.650. 

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