Por André Gabeh
Rio - Bandidos presos. Ânimos acalmados. Dona Mica revirava os olhos, perdida dentro de si, enquanto chupava um sacolé de caipirinha que encontrou no fundo do freezer. Peita, Feia e Batman ainda tremiam de adrenalina, pareciam pardais drogados de Loló. Ximbica demorou a assimilar todos os acontecimentos, mas finalmente respirou fundo e veio dar as informações que precisava compartilhar:

- Conseguimos o caixão pra Seu Gaguinho. Tá tudo certo. Mas tem um probleminha...

- Um probleminha? Mais um? Olhe ao seu redor. - Anacleto Filho comentou. Dona Mica estava agarrada com os restos mortais da estátua da Escrava Anastácia. Agradecia a Santa pela graça alcançada enquanto Mucuca, ajudado por Venezuellen, limpava os cacos mais cortantes.

Ximbica explicou: - Devido ao adiantado da hora, a emergência da situação e por tudo ter sido muito repentino, não conseguimos vaga no cemitério de Inhaúma e só conseguimos sepultara no Cemitério de Irajá, que não tem capela disponível.

- Anacleto precisa de velório não! Enterra logo. Faz melhor, vou te dar um dinheiro e você compra uns vinte quilos de milho de pipoca, enfia nos buracos dele e taca fogo naquele safado. Vou adorar saber que aquele traste virou um pipocário. - Dona Mica falou com voz pastosa, cortada por gargalhadas esporádicas, enquanto bebia um vidrinho de Cashmere Bouquet. As pessoas fingiram que não escutaram. Só Edmilsinho Batman sugeriu que colocassem uns cinco quilos de açúcar e manteiga por cima do corpo, pro avô virar pipoca doce. Causou um certo choque na audiência, mas foi esquecido quando Ximbica deu as informações sobre o féretro:

- Não poderemos fazer velório na capela, mas Seu Biquinho, dono do BOI BOIANDO, restaurante que seu Gaguinho amava, ofereceu o salão de festa dele pra gente fazer a despedida, aí desenrolamos com o Urubu, coveiro lá do cemitério e amigo nosso, e, dando um “por fora” a gente pode enterrar nosso morto até umas oito da noite, porque o cemitério vai ter evento até tarde.

- Eêntu? - Mucuca perguntou interessadíssimo com sua articulação peculiar.

- É, reunião do sindicato dos Exus. Só confraternização. Vai ter show da Lecy Brandão e tudo, voz e violão.

- Enterro de noite?? Com show de MPB? Isso é o apocalipse. - Venezuellen intercedeu.

- É samba de roda. - Ximbica respondeu.

- Eu sou uma mulher distinta, uma senhora. Você acha que eu vou me expor como corna mansa no gurufim de um surubista? Me admira meus filhos permitirem uma coisa dessas. Quero ver quando as amantes aparecerem com os filhos debaixo do braço e vocês ficarem sabendo que vão precisar dividir herança com desconhecidos. Só vou dizer bem feito e gargalhar. Essa casa tá em meu nome. Tô feita. O resto? Casa em Sepetiba? Carros? Se virem.

Anacleto Filho e os outros irmãos caíram na real e se assustaram com essa possibilidade.

- Mamãe! Isso não é justo!! O patrimônio de papai tem que vir pra senhora e depois pra gente. Nós que somos a família dele. - Venezuellen ficou territorialista, subitamente.

Dona Mica fez cara de “problema é seu” e deixou sua posição bem clara: - Meu patrimônio tá garantido e dinheiro não me falta graças a meus alunos e as minhas macumbas. Vocês, os filhinhos, que vão ficar sem herança, porque depois dessa traição de não me apoiarem pra eu não ir a esse enterro, vou deixar essa casa pro EM CIMA DA HORA . Vão ter que bater cabeça no tribunal com os bastardos do seu pai.

Um bem-te-vi cantou na hora. Agouro.

- Dona Mica, nem todo filho não reconhecido, se interessa pelos bens dos pais falecidos.- Peita falou tão amorosamente que sua voz parecia a Oração de São Francisco cantada pela Kátia Cega.

Dona Mica que agora comia um sabão de coco embebido em óleo diesel, respondeu com a boca cheia: - Todo mundo é bonzinho até sentir o cheiro do dinheiro.

Peita começou a chorar copiosamente.

Mucuca perguntou fanhamente: - Que foi?? 

- Eu nunca contei pra ninguém, mas eu sou filha do Seu Gaguinho. - Peita choramingou.

Choque geral.

A buzina do padeiro tocou alta no meio da rua.

CONTINUA