Rio - A onda de ataques a supostos criminosos e moradores de rua em diversos bairros do Rio — boa parte deles, menores de idade — por parte de grupos que se autointitulam ‘justiceiros’ vem se tornando rotina. A sede de ‘fazer justiça com as próprias mãos’ preocupa autoridades, amplia a polêmica sobre o assunto nas redes sociais e causa repercussão no exterior.
Um caso no Aterro do Flamengo sexta-feira levantou a discussão: um adolescente de 15 anos foi torturado e preso nu a um poste, com tranca de bicicleta no pescoço. No início da noite de ontem, em depoimento na 9ª DP (Catete), o menor, que tem três passagens pela polícia, revelou ter sido agredido por cerca de 30 homens, um deles armado com pistola.
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No início da tarde de ontem, em Copacabana, um adolescente de 17 anos, que tentou roubar cordão de uma mulher, foi perseguido e detido por comerciantes. Segundo o jovem, ele teria sido agredido e teve os pés amarrados com barbantes. No dia 27, um homem roubou o celular de uma mulher na saída do Túnel Martin de Sá, na Rua do Riachuelo, no Centro, em frente a uma cabine da PM que, segundo testemunhas, estava vazia.
“A vítima gritou por socorro e, em poucos minutos, pelo menos 20 pessoas cercaram o acusado, o imobilizaram e o agrediram. Em seguida, dois PMs chegaram e o conduziram algemado para a 5ª DP (Mem de Sá)”, detalhou o presidente da Associação de Moradores da região, Moisés Muniz, que filmou e fotografou a cena.
Na filmagem, postada no Youtube, é possível perceber a ira dos moradores. “Deixa ele aqui, doutor”, grita um homem, em meio a xingamentos, enquanto os policiais conduzem o suspeito, assustado, à viatura. “Ele já é conhecido da área, integrante da Gangue da Bicicleta. Sabe como é: não tinha polícia na área, então o povo teve que agir”, justificou Moisés. A tese, aliás, é compartilhada por defensores dos ‘justiceiros’ nas redes sociais.
No Centro, ação é muito comum entre populares
O delegado da 5ª DP (Mem de Sá), Alcides Pereira, disse ‘ser comum’ suspeitos serem detidos por outras pessoas no Centro e depois conduzidos pela PM à delegacia. “A recomendação é que a polícia seja sempre acionada, obviamente, sem o suspeito ser agredido”.
Assim como sociólogos, o padre Renato Chiera, que acolhe menores infratores, condena os ‘justiceiros’. “Querem combater de maneira covarde as consequências, e não as causas do caos social”, opinou. Em nota, a PM informou que, no caso do homem preso na Rua do Riachuelo, a cabine da corporação estava vazia, porque policiais foram “acionados para ocorrências”.
Menor conta que foi agredido a chutes e teve os pés amarrados
O menor detido por comerciantes ontem contou, na 13ª DP (Copacabana), que antes de a PM chegar, foi agredido a chutes e, em seguida, teve os pés amarrados. Segundo testemunhas, ele foi pego na Rua Leopoldo Miguez. “Me chutaram e amarraram meus pés com barbantes, mas consegui me soltar. A sorte é que a polícia chegou a tempo”, contou o adolescente, que responderá por furto.
Segundo a polícia, ele estaria com outro jovem, que acabou fugindo com o cordão roubado. “Deram um ‘sacode’ nele antes de a PM chegar. Todo dia tem esse tipo de ação de criminosos aqui. Ninguém aguenta mais isso”, disse um segurança que trabalha na região e preferiu não se identificar.
Na madrugada de sábado, mais um caso de violência semelhante: dois rapazes — um deles menor de idade — foram espancados na Penha, depois de terem roubado celulares de outros dois jovens na Rua Quito. Luiz Felipe Rodrigues da Silva, 23, e seu comparsa adolescente precisaram ser atendidos no Hospital Souza Aguiar, antes de ser conduzidos à 22ª DP (Penha).
O instinto de vingança de parte da população foi destacado na terça-feira pelo tabloide britânico 'Daily Mail', que publicou a foto do adolescente agredido no Flamengo com o título: “Vigilantes brasileiros pegam 'ladrão'”. Na reportagem, são citadas as discussões contra e a favor dos ‘justiceiros’ na internet.
Artista diz sofrer ameaças por ajudar jovem
A artista plástica Yvonne Bezerra de Melo disse ontem, ao entrar na 9ª DP (Catete) para depor sobre o caso do menor amarrado ao poste, que está sendo ameaçada de morte. “Estou sendo xingada porque ajudei uma pessoa que eu nem conhecia. Estou sendo acusada de estar defendendo bandidos. Estou de saco cheio dessa sociedade. P* que pariu”.
Mas, segundo a delegada-titular da 9ª DP, Monique Vidal, Yvonne não relatou as ameaças em depoimento. Na delegacia, disse apenas que foi chamada por um vizinho para socorrer o adolescente e afirmou que não procurou a polícia porque o Corpo de Bombeiros logo o levou para o Hospital Souza Aguiar, no Centro.
Segundo a policial, o depoimento não foi esclarecedor. “Ela disse que PMs também estavam no local em que o rapaz foi achado”, contou Monique Vidal. Ela investiga a ação de um grupo de jovens de classe média, que se denomina Os Justiceiros, que seriam os agressores. A delegada já pediu imagens de câmeras da região.
Monique investiga também se os 14 jovens detidos pela PM no Aterro do Flamengo na segunda-feira fazem parte da gangue. Um deles, Lucas Felício, admitiu na 9ª DP que tem agido em grupo na caça a supostos infratores, mas disse que não está envolvido na agressão ao menor.
Ontem, ele retirou do ar sua página no Facebook . “Porrada na vagabundagem mesmo”, comentava, entre outras declarações.
Grupo estava em academia e chegou em motos
Após ser torturado e amarrado a um poste pelo pescoço com uma trava de bicicleta a um poste no Flamengo, o adolescente E., de 15 anos, buscou refúgio num ambiente que se tornou familiar para ele: um abrigo municipal. Filho de um traficante morto quando ele era um bebê e proibido por quadrilha de milicianos de voltar à casa da mãe por furtar uma furadeira, em Campo Grande, na Zona Oeste, ele virou figurinha carimbada no abrigo. Só nos últimos três meses, procurou o local em busca de uma cama para dormir em cinco ocasiões.
A última foi no sábado. E., mesmo depois de ter sido torturado, não fez alarde. Só foi reconhecido ontem por uma diretora. Então, repetiu aos funcionários do abrigo a mesma versão que contaria ontem à noite na 9ª DP (Catete). Ele disse que estava com três amigos por volta das 2h30, a caminho de Copacabana, quando foi abordado por 30 homens. Eles estavam com as motos junto ao meio-fio e faziam musculação numa academia na Enseada de Botafogo.
Ele e outro amigo não fugiram porque foram ameaçados por uma pistola 9 milímetros — uma ‘nove nariguda’, como descreveu na delegacia. Em meio às agressões, o amigo dele escapou. E, antes de ser preso, disse ter ouvido: “Você vai pagar pelos que fugiram!”
Nenhum dos acusados foi identificado pela vítima
Nenhum dos 14 jovens detidos na segunda-feira, sob a suspeita de integrar um grupo de ‘justiceiros’, foi identificado pelo adolescente em depoimento. Eles foram pegos enquanto dois rapazes pediam socorro. Sem antecedentes criminais, eles serão investigados por formação de quadrilha e por corrupção de menores.
Enquanto isso, a delegada Monique Vidal busca vítimas do adolescente agredido, que é menor infrator e tem passagem pela polícia por roubo, furto e lesão corporal. “Investigar roubo a pedestre é complicado, porque é uma população flutuante. Se houvesse o policiamento ostensivo facilitaria nossa vida”, disse.