Por bianca.lobianco
Rio - Na noite do dia 19 de março de 1971 um homem pardo, com cerca de 25 anos, foi encontrado inerte em frente à Praça da República e à faculdade de Direito, no Centro do Rio. Eram 21h. Suposta vítima de atropelamento, usava paletó cáqui e foi levado ao Hospital Souza Aguiar, onde deu entrada às 21h26. Morreu meia hora depois.
Dois anos antes, em 15 de março de 1969, outro rapaz não teve nem a chance de ser socorrido. O corpo dele foi achado no então posto de salvamento do Caju. Vestia camisa branca, calça e sapatos pretos. Tinha um anel de metal e carteira de couro preta com 34 cruzeiros.
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Ambos chegaram ao Instituto Médico Legal portando guias sem nome e se tornaram indigentes por mais de 40 anos. Foram enterrados em covas rasas e esquecidos até a semana passada, quando pesquisadores da Comissão Nacional da Verdade (CNV) no Rio descobriram que eram desaparecidos políticos: Joel Vasconcelos Santos e Paulo Torres Gonçalves, respectivamente — os dois únicos encontrados pela CNV. A pesquisa completa à qual O DIA teve acesso com exclusividade mostra que o confronto entre as digitais registradas no Instituto Félix Pacheco e o laudo cadavérico, feito pela CNV, permitiu constatar que o corpo de Joel foi necropsiado no IML em 20 de março de 1971 — cinco dias depois da prisão. Já o cadáver de Paulo chegou em 29 de março de 1969 — dois dias depois do desaparecimento.
Joel e Paulo Gonçalves%3A Desaparecidos políticos identificados pela CNVDivulgação CNV

O baiano Joel Vasconcelos Santos, 21 anos, estudava para ser contador em março de 1971. Cinco anos antes, trocara a pequena Nazaré (BA) pelo Rio em busca de uma vida melhor. Em meio ao clima de contestação à ditadura das ruas cariocas, ele passou a frequentar com irmãos e amigos as lendárias passeatas na Avenida Rio Branco. Com o passar dos anos, filiou-se ao PCdoB e se tornou dirigente estudantil. No auge da repressão, em 1971, distribuia panfletos sobre a luta armada numa das entradas do morro do Borel, na Zona Norte, quando foi preso por agentes do Dops.

O secundarista Paulo Torres Gonçalves também não ignorava o tempo em que vivia e encabeçava discussões políticas no Colégio Estadual Ferreira Viana (atual Escola Técnica de mesmo nome). Paulinho, como era chamado, tinha 19 anos. Trabalhava de dia no Instituto Brasileiro de Orientação Popular e estudava à noite. Sempre que podia também se unia às marchas de protesto. Um dia tomou um ônibus e sumiu.
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No detalhamento do exame de Joel, a comprovação da tortura a que ele foi submetido no DOI-Codi. Entre as lesões descritas, estão diversas marcas pelo corpo e o pênis dilacerado. O militante Antônio Carlos de Oliveira da Silva, preso e espancado junto com Joel, denunciou, desde que deixou a prisão, que o amigo foi vítima da “esticadeira” com pedra amarrada aos testículos. O laudo de Paulo ainda está sendo analisado.
Cartas para presidente ditador e corpo trocado no IML
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A vida de Miracy Torres Gonçalves e de Paulo Fernandes virou do avesso desde que Paulo sumiu. Os dois passaram meses procurando seu único filho por hospitais, polícia e instituições militares. Estiveram também no IML e no IFP. Lá chegaram perto de encontrar o filho.
De acordo com Fernando Torres, tio de Paulo, a família recebeu a informação de que Paulinho tinha morrido afogado, mas quando o pai foi reconhecer o cadáver o corpo era de um homem pardo e muito diferente. A CNV suspeita que tenha sido apresentado outro corpo. E a busca continuou sem sucesso. Miracy escreveu até ao presidente Médici.
Documentos da repressão e respostas à mãe de Joel%3A quebra-cabeça levou à descoberta de ossadasDivulgação

A dor deu lugar ao isolamento e os dois se fecharam na casa em Pilares por quase 10 anos. Não quiseram mais ter filhos e sequer tocavam no nome de Paulo durante conversas de família. Depois de algum tempo desenvolveram um intenso afeto por animais — algo inexistente até aquele momento. “Ela e o pai ficaram muito desgostosos e do nada começaram a se dedicar a cães e gatos. Achavam na rua e levavam para casa. Chegaram a ter mais de 30 animais em casa”, conta Francisco Velasques, primo de Paulo.

Os dois morreram nos últimos 10 anos. Não viveram para saber que o filho foi enterrado na sepultura 10.624 do Cemitério da Cacuia, na Ilha do Governador. Anos depois os restos mortais foram levados para o ossário geral e depois incinerados.

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Mãe fundou o ‘Tortura Nunca Mais’
Os filhos costumam contar que Elza Joana os criou em cima de uma máquina de costura, ensinando a todos um ofício. Joel, o segundo, era sapateiro e começou a trabalhar aos 11. Baiano, ajudava ‘Mainha’ a não deixar que nada faltasse em casa, até desaparecer.
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A partir desse dia Elza, que já era uma sindicalista ativa, transformou-se numa obstinada militante. Escreveu ao presidente Médici, ao ministro Golbery do Couto e Silva, ao Papa João Paulo II, e a quem mais pudesse ajudar a localizar seu Joel. Em todas, começava dizendo que o filho morreu dia 19 de março.
“Ela sempre dizia: ‘Sei que ele morreu nessa data”, conta Altair, irmã de Joel, surpresa com a coincidência entre a data que consta nos documentos encontrados pela CNV e a intuição da mãe.
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Elza ajudou a fundar o Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, fez greve de fome e denunciou o caso enquanto teve forças. Em 1994, morreu pedindo aos filhos que não deixassem de falar do irmão. Seu coração não aguentou tempo suficiente para saber que Josel foi enterrado na sepultura 20536 no Cemitério de Ricardo de Albuquerque em 06/04/1971. “É uma pena que ela não esteja aqui”, desabafou José, o irmão mais novo de Joel.
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