Por nicolas.satriano
Rio - "Isso é embaraçoso, não? Parece que não encontramos o que você está procurando. Talvez a busca, ou um dos links abaixo, possa ajudar". Esta é a mensagem que aparece na página da jornalista Hildegard Angel, na tarde desta terça-feira, no lugar de texto publicado nesta segunda-feira, onde ela sugeria, em dois tópicos, que a redução da violência no verão carioca não merecia ações "titubiantes" do poder público. As medidas propostas, no entanto, geraram uma repercussão negativa e provocaram uma chuva de críticas à jornalista, que chegou a ser acusada de simpatizar com ideologias nazistas.

Segundo sugestões de Hilde, as autoridades precisam ser "enérgicas e corajosas", e a população não pode estar sujeita ao medo, à violência e ao vandalismo desenfreados. A primeira medida proposta por Hilde, então, é que "em dias de grande concentração de pessoas nas ruas e praias, nos fins de semana e feriados do verão", a circulação de linhas de ônibus e metrô no fluxo Zona Norte - Zona Sul seja "drasticamente" diminuída.

Texto original saiu do ar e%2C depois%2C Hilde publicou outro com mesmo título%2C mas com "conceito revisado"Reprodução Internet

A segunda e não menos polêmica sugestão da jornalista, chamada por ela de "plano B radical", é cobrar entrada nas praias do Leme, Copacabana, Ipanema e Leblon. Segundo ela, que assume que as "soluções" são "antipáticas e discriminatórias", a justificativa para tais atos é que, do contrário, a vida do carioca seria um caos. Ou, de acordo com ela, caos já é.

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Em sua página no Facebook, quando compartilhou o texto, Hilde recebeu todos os tipos de críticas. Alguns simpatizantes apenas ignoraram o conteúdo do texto e chegaram a chamar de "filme de terror" o que se vive nas praias da Zona Sul. Outros simplesmente satirizaram a posição da jornalista e foram enfáticos em duras críticas, sugerindo inclusive que ela seria simpatizante de ideologias nazistas.
"Revisão de conceito"
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Depois de despublicar o texto, a jornalista Hildegard Angel postou um novo conteúdo com o mesmo título "O caos já se instalou no Rio", e uma pequena diferença em parêntese "(agora com revisão de conceito)". Na nova publicação, a jornalista faz uma retratação e explica os motivos que levaram ela a sugerir tais medidas. "Quem mandou escrever sem refletir direito!", diz Hilde. No fim, a jornalista revela preferir a "sombra dos abacateiros da Zona Norte, na Usina da Tijuca". Segundo ela, "muito melhor, mais sossegado, fresquinho,  ventinho, verdinho". 
Ações que estimulam segregação são recorrentes, diz socióloga
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Aqueles que não querem mais ver no Rio o retrato de uma cidade partida se incomodaram com as sugestões de Hildegard Angel. A socióloga Bianca Freire-Medeiros, autora do livro ‘Gringo na Laje: produção, circulação e consumo da favela turística’, criticou o tom de seu discurso: “Essas propostas, que aparecem como novidade de verão, nada mais são do que preconceitos requentados”.
Praia do Arpoador%2C na Zona Sul%2C na tarde desta terça%2C repleta de banhistas e turistasFernando Souza / Agência O Dia

Bianca lembra que em abril de 2004, quando um grupo de traficantes da Favela do Vidigal invadiu a Rocinha em um episódio que culminou na morte de 11 moradores, debates parecidos foram suscitados e a repercussão nos meios de comunicação foi enorme. “A própria Hildegard e outros jornalistas propuseram a remoção da Rocinha inteira, nessa ocasião. Dez anos depois, continuam as fantasias de segregação de vários segmentos da população da nossa cidade”, pontua a socióloga.

Em um momento de autocrítica, Hildegard admitiu que foi infeliz no texto, e que já tinha mudado de opinião. Ela contou que, ao ver as imagens de guardas municipais batendo de cassetete nos suspeitos de provocarem os tumultos e arrastões, no último domingo, em Ipanema, ficou inquieta. Por isso, tinha formulado a teoria de que “sem a superpopulação nas praias, não haveria esse tipo de problema”.

O fundador da ONG Enraizados, Dudu do Morro Agudo, que coordena, no projeto, uma escola de hip hop em Nova Iguaçu, avalia as declarações como “surreais: “Pagar para ir à praia é impensável. É apenas uma forma ilegal e injusta de a classe média alta garantir o acesso exclusivo e manter os pobres e pretos bem longe. Afinal, eles não poderiam pagar mesmo”.
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Em 1984, linha que levava a Ipanema gerou reações
Afinal, quem é o dono da bola? A polêmica sobre quem tem direito ao sol nas areias da Zona Sul vem de longe. O jornalista Joaquim Ferreira dos Santos foi dos primeiros a jogar luzes sobre a questão numa reportagem do Caderno B, do ‘Jornal do Brasil’, em novembro de 1984.
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Retratando a reação gerada pela inauguração da linha 461, que ainda hoje faz o trajeto São Cristóvão — Ipanema, Joaquim ouviu comerciantes, moradores e empresários de Ipanema, inconformados com a novidade. Uma lojista disse ao repórter: “A praia mudou de cor. Apareceram umas caras novas”. “Que gente feia, hein?!”, dizia outro. “É farofeiro para tudo quanto é lado”, reclamou um terceiro.
Em 2014, a antropóloga Julia O’Donell retomou a questão do ‘apartheid’ social em territórios públicos, e mais especificamente, na praia, em sua tese de doutorado e no livro, lançado ano passado, ‘A Invenção de Copacabana’. Em ambos, a pesquisadora reflete sobre as dinâmicas sociais que resultaram na “promoção” da praia de um misto sem graça de terra e mar a um ícone de um estilo de vida sofisticado, e, consequentemente, em um espaço só para ricos.
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Reportagem de Luiza Gomes
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