Rio - Muita gente guarda um ‘civilizador’ adormecido na alma. Recebo com frequência indagações sobre minhas referências para falar de história, pensar a cidade do Rio e interagir com ela. Respondo que me inspiro nas lições do Caboclo da Pedra Preta, aquele que cantou a beleza da pedrinha miudinha da Aruanda e encontrou, no que aparentemente é insignificante, o caminho para entender e indagar o mundo.
Busco pensar a cultura carioca a partir de um poder que Exu tem: o de ser ‘enugbarijó’, a boca que tudo come. Exu come o que lhe for oferecido e, logo depois, restitui o que engoliu de forma renovada, como potência que, ao mesmo tempo, preserva e transforma. A cidade que me interessa é aquela que nas frestas e esquinas ritualiza a vida para o encantamento dos cantos e dos corpos. Aquela que subverteu a chibata em baqueta de surdo de marcação.
Nós estamos adoecidos de ‘ismos’. Clamamos por revoluções libertadoras que são, paradoxalmente, normativas. Há quem desqualifique os saberes da gira; há quem os abrace exoticamente como modos de fazer alternativos, sem a coragem, todavia, para o mergulho que raspará o fundo do tacho; há quem os veja de forma paternalista e simpática, sem descer do pedestal de suas epistemes viciadas. A primeira postura me irrita, a segunda me enfada e a terceira — uma espécie de ‘imperialismo cordial’ — me desanima.
É com esta perspectiva que vibrei com o enredo do Salgueiro no Carnaval: ‘Ópera dos Malandros’. Falar de orixá, para muita gente, é encarado como algo normal em desfiles de escolas de samba, salvo faniquitos dos intolerantes mais histéricos. Mas o Salgueiro foi além e falou, a partir do musical de Chico Buarque, da macumba carioca, do catimbó nordestino, do povo de rua virado na malandragem do Rio, na pulsão entre ordem e desordem que a cidade enseja.
A Mangueira mereceu; a Portela arrebatou. Mas como foi corajoso ver a Academia do Samba desfilar louvando o povo que amedronta e produz um saber e formas de beleza que desconfortam o cânone. Botar Tranca-Rua de capa e cartola abrindo o desfile e o Zé das Alagoas, juremeiro do catimbó, fechando, cercado pelas pombagiras e abençoado por Oxalá, faz mais pela luta por uma cidade plural que muito discurso bacana.
Tem muita coisa pra ser descortinada e inventada, e vejo o conhecimento como uma forma de brincar. Conheço, afinal, muito ponto de macumba que minha avó me ensinou. Desse legado potente de outros olhares sobre o mundo — o mesmo que inspirou o Salgueiro na avenida e me educou — não abrirei mão.
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