Jornalista Vladimir Herzog, torturado e morto nas dependências do DOI-CODI, em São Paulo, durante a ditadura militarReprodução
Por *Larissa Amaral e *Luiz Franco
Publicado 29/03/2019 20:36 | Atualizado 29/03/2019 20:45

Rio - "Não houve ditadura", disse o presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), em entrevista ao programa de José Luiz Datena, da TV Bandeirantes, nesta quarta-feira. No mesmo dia, o governador do Rio, Wilson Witzel, e o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, fizeram declarações semelhantes. O governador disse à rádio CBN que "nunca houve golpe (militar) no Brasil". Já o ministro foi além: não apenas negou o golpe, mas afirmou que o movimento que instaurou a ditadura militar no Brasil "foi necessário para que o país não virasse uma ditadura".

As declarações vêm na esteira da orientação de Bolsonaro para que os quartéis das Forças Armadas comemorem "devidamente" o dia 31 de março, data em que o regime ditatorial foi instaurado no país, em 1964. Na noite desta sexta-feira, a juíza Ivani Silva da Luz, da 6ª Vara da Justiça Federal, em Brasília, decidiu proibir a comemoração do golpe, declarando que ela não é compatível com a democracia e a Constituição Federal de 1988. Ainda assim, o presidente contou com o apoio de congressistas, como a deputada federal Joice Hasselmann (PSL). No Twitter, a jornalista publicou uma foto em que afirma que o festejo do aniversário do início da ditadura "é a retomada da narrativa verdadeira de nossa história".

Mas como negar (ou relativizar) a existência de um período histórico confirmado por livros e documentos, que destituiu 4.841 representantes eleitos de seus cargos, torturou aproximadamente 20.000 e assassinou ou sequestrou pelo menos 434 pessoas? As falas de Bolsonaro, Witzel, Araújo e da deputada são um exemplo de uma linha de interpretação chamada revisionismo histórico, ou negacionismo histórico. "O revisionismo é uma estratégia deliberada para legitimar o poder de grupos de direita, nacionalistas e populistas, tentando vender uma ideia de mundo em que essa narrativa faça sentido", afirma Guilherme Casarões, cientista político e professor da FGV EAESP. "Eles precisam rever a História para que possam defender as próprias ideias sem ser chamados de fascistas e autoritários".

"É muito perigoso quando um governante, ou outra pessoa pública, diz que não houve golpe e ainda pretende celebrar a data", pondera o historiador Lucas Pedretti, Mestre em História Social da Cultura pela PUC-Rio. "É uma visão deturpada da História", completa.

Em linhas gerais, "o revisionismo acontece quando surgem visões narrativas do passado, que tentam questionar o pensamento dos historiadores", explica Pedretti. "No caso de Bolsonaro (ao negar o golpe militar), é uma leitura negacionista dos fatos". 

Presidente da República, Jair Bolsonaro orientou a comemoração da data que celebra o início da ditadura no BrasilAFP

Comissão da Verdade e Lei da Anistia

Pedretti relaciona a facilidade de governantes em deturpar a história da ditadura brasileira com o fato de que a Comissão Nacional da Verdade, responsável por investigar os crimes políticos cometidos no período, não teve seu trabalho finalizado. "A mais forte das leituras revisionistas é a ideia de ‘ditabranda’. Para afirmar as visões que legitimam o Estado ditatorial, se construiu na memória a ideia de que a violência dos militares não foi tão grande. Sendo que, na verdade, o regime deixou incontáveis vítimas, não apenas os 434 mortos ou desaparecidos que constam nos documentos oficiais", argumenta Lucas.

A Comissão Nacional da Verdade foi criada pela Lei 12528/2011 e instituída em 16 de maio de 2012, com o objetivo de apurar as graves violações de direitos humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988.

Para o historiador, a criação da Comissão foi "muito tardia" – quase três décadas após o fim do regime –, e teve poucas consequências práticas. Nenhum torturador, por exemplo, foi punido. "Nunca conseguimos revisar a Lei da Anistia, que garante até hoje impunidade aos torturadores", afirma. A Lei da Anistia, uma etapa da retomada da democracia no país, foi promulgada em 1979 e garantiu liberdade aos perseguidos políticos da ditadura. No entanto, ela também garantiu que os militares que cometeram crime durante o período não fossem punidos.

Pedretti entende que o revisionismo (ou negacionismo) é, também, uma reação conservadora à tentativa de revelação do que realmente aconteceu durante a ditadura militar brasileira. "Nosso caso é tão difícil, que o pouco que foi feito (pela Comissão da Verdade) incomodou muito", conclui.

O Revisionismo no contexto global

O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, além de negar o golpe militar, também afirmou, em entrevista ao canal Brasil Paralelo, no Youtube, que "o nazismo é de esquerda". O chanceler disse que o nacionalismo era uma "coisa boa" antes de ter sido "sequestrado" pela esquerda.

Ele não foi o único líder a expôr uma leitura revisionista sobre o nazismo. O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, afirmou, em 2015, que Hitler não desejava matar judeus.

Primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, aliado político de Jair Bolsonaro, também já fez declarações apresentando uma visão alternativa sobre o nazismoFernando Frazão/Agência Brasil

"Estamos diante de um grande conjunto de líderes – Bolsonaro no Brasil, Netanyahu em Israel, Donald Trump nos EUA, Matteo Salvini na Itália, Viktor Orbán na Hungria e Andrzej Duda na Polônia – que têm dado declarações sistemáticas negando o passado e tentando reconstruir a História", explica Guilherme Casarões, que também é mestre em Relações Internacionais.

No caso da declaração de Araújo, "o problema, além de negar os fatos, é que ele está assumindo que o nacionalismo é bom e que só se tornou ruim após o nazismo. Quando, na verdade, tivemos uma guerra mundial anterior causada pelo nacionalismo", rebate Casarões.

Ele lembrou ainda que, durante o discurso de posse, o chanceler citou apenas cinco países como potenciais aliados: justamente Israel, Estados Unidos, Itália, Hungria e Polônia. Segundo Casarões, é preocupante "quando você percebe que as alianças do mundo já estão sendo reconfiguradas em função disso (de uma visão revisionista da História)".

Para o professor, o revisionismo nega os pilares fundamentais da democracia liberal: "A democracia que diz respeito aos direitos humanos, à defesa do meio ambiente, baseada na liberdade do indivíduo." 

O papel da internet e das redes sociais

O Brasil Paralelo, de nome sugestivo, está longe de ser o único canal do Youtube a propagar visões revisionistas e contrárias à História. Segundo Casarões, a internet é um ambiente propício para o surgimento de visões alternativas e teorias conspiratórias. "As redes sociais, os chans, os fóruns etc, aceitam tudo e qualquer coisa. É muito difícil vencer uma batalha travada no campo da internet, onde não há regras e há um amontoado de fatos misturados à fake news", afirma o cientista político. "Basta que um (youtuber como) Nando Moura comece a falar que o nazismo é de esquerda, que as pessoas vão começar a repetir", conclui.  

Ernesto Araújo afirmou que o nazismo é de esquerda em entrevista ao canal Brasil ParaleloReprodução Youtube

Reação de órgãos nacionais e internacionais

Desde que o presidente Jair Bolsonaro orientou a celebração da data em que o regime ditatorial foi instaurado no país, no dia 31 de março, diversos órgãos nacionais e internacionais se posicionaram de forma contrária à decisão.

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em conjunto com o Instituto Vladimir Herzog, enviou uma denúncia à Organização das Nações Unidas (ONU) na manhã desta sexta-feira. O documento afirma que Bolsonaro e outros membros do governo tentam "modificar a narrativa histórica do golpe que instaurou uma ditadura militar", o que constitui "uma violação dos tratados aos quais o Brasil passou a fazer parte depois de retornar à democracia".

O Instituto leva o nome do jornalista Vladimir Herzog, torturado e morto nas dependências do DOI-CODI, em São Paulo, durante a ditadura militar. 

Antes disso, o presidente da OAB/RJ, Luciano Carneiro, também havia se posicionado de forma contrária à orientação do presidente. "Comemorar uma tomada de poder pela força das armas, que contraria esse princípio democrático, é apologia a algo contrário ao que prega a Constituição", afirmou ele.

O Ministério Público Federal (MPF), por sua vez, recomendou que os comandos militares se abstenham da comemoração do golpe de 1964. "A homenagem por servidores civis e militares, no exercício de suas funções, ao período histórico no qual houve supressão de direitos e da democracia viola a Constituição Federal, que repudia o crime de tortura e prevê como crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático", justifica um trecho do documento emitido pelo órgão.

A Human Rights Watch, ONG internacional que defende os direitos humanos, por sua vez, publicou um texto em seu site oficial intitulado "Bolsonaro comemora ditadura brutal". A ONG afirmou que "o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, restabeleceu as comemorações do golpe de 1964, que inaugurou duas décadas de uma ditadura militar marcada por milhares de casos de tortura e execuções". O texto cita os números de vítimas do regime militar e recorda alguns fatos sobre Bolsonaro, como quando ele elogiou o ex-ditador paraguaio Alfredo Stroessner e afirmou que as ditaduras do Cone Sul "pacificaram" a região, em evento recente no país. 

*Estagiários sob supervisão de Thiago Antunes

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