Padre Assis durante celebração de casamento coletivo em Franco da Rocha, na Grande SP,Orlando Júnior/Prefeitura de Franco da Rocha
Publicado 09/12/2022 09:58 | Atualizado 09/12/2022 11:29
O afastamento do padre Ivanildo de Assis Mendes Tavares das funções religiosas da comunidade São José Operário da Vila Prudente, na Zona Leste de São Paulo, tem gerado comoção entre os moradores católicos de várias comunidades carentes. Uma carta aberta e um abaixo-assinado documentam a insatisfação de cinco comunidades da região contra a decisão da Igreja Católica de afastar o religioso por abençoar a união de casais gays. 
O padre é ativista e desde 2013 desempenha um trabalho pastoral importante na sociedade. O religioso nasceu em Cabo Verde, é negro e usa cabelos no estilo dread. Ele é conhecido pela proximidade com os moradores das favelas da Vila Prudente e com imigrantes, pelo trabalho religioso que faz em presídios e por defender causas como a dos movimentos negros e LGBTQIA+.
Ele foi punido, pelo Arcebispo de São Paulo, Dom Odilo Pedro Scherer, por ter participado de um casamento comunitário sem autorização da igreja realizado no dia 22 de outubro em Franco da Rocha, na região metropolitana de São Paulo. Padre Assis é acusado de "simulação de sacramento". Na cerimônia, ao menos três casais abençoados pelos vários religiosos presentes, de diferentes crenças religiosas, eram gays.
O evento comunitário foi organizado pela Prefeitura de Franco da Rocha em um ginásio de esportes. Foi a 15ª edição desse tipo de ação na cidade. Além de oficializar as uniões civis, os casais costumam receber uma bênção inter-religiosa. Estavam presentes o padre Assis, a yalorixá Tania ti Oyá, o pastor Sérgio Cunha e o kardecista José Lúcio Arantes.
Religiosos que participaram do casamento coletivo em Franco da Rocha - Orlando Júnior/Prefeitura de Franco da Rocha
Religiosos que participaram do casamento coletivo em Franco da RochaOrlando Júnior/Prefeitura de Franco da Rocha
Na carta de afastamento, o Arcebispo alega que o padre participou de uma "simulação de sacramento", conduta que é proibida pelo código canônico, uma espécie de ordenamento jurídico que rege a Igreja Católica. Com isso, o padre está proibido de celebrar sacramentos e de exercer suas funções sacerdotais.
"Observe-se que na celebração do casamento em questão estavam presentes, com participação ativa, representantes de outras denominações religiosas, o que não está previsto na forma canônica para a celebração do sacramento do matrimônio", afirma trecho do documento assinado por Dom Odilo.
Para Assis, o fato de ter abençoado três casais homoafetivos gerou reclamações à cúpula da igreja, como se ele tivesse celebrado um casamento gay. "Só fiz uma bênção. Como benzo cachorro, benzo gato, benzo carro. Então eu benzi pessoas", desabafa o religioso.
Após conversar com Dom Odilo, ele foi suspenso. Antes de viajar para Cabo Verde, onde ficará de férias até março, o padre escreveu uma carta de agradecimento pela solidariedade recebida e deu a sua opinição sobre o que pensa da punição que recebeu. O religioso escreveu também que prefere contar aos sobrinhos que foi suspenso por benzer pessoas do que por roubar a igreja, ser acusado de pedofilia, ter engravidado alguém ou separado famílias.
"Estamos discutindo uma coisa bem séria, pois podemos ordenar pessoas homoafetivas, mas não podemos abençoá-las. Eu, nos meus 20 e poucos anos de caminhada, conheci seminaristas, padres, bispos e cardeais homoafetivos. Via e vejo pessoas que amam, que se dedicam, que se doam totalmente em prol do reino de Deus. Se amanhã quiserem construir famílias e ter uma relação assumida, não terão direito a uma bênção oficial da madre Igreja Católica Apostólica Romana", pontuou.
O afastamento, no final de novembro, gerou um abaixo-assinado publicado pela Comunidade São José Operário nas redes sociais, onde mais de 2.500 pessoas assinaram o documento pedindo que Dom Odilo reconsidere a punição. O título da carta diz que "Entre a lei e o amor, escolhemos o amor!" e pede que a Igreja Católica reconsidere o afastamento do padre.
"Desde sua chegada a Área Pastoral São José Operário, nas favelas da Vila Prudente, caminhando no meio do povo, entre os becos e vielas sua opção é bem clara, e para nós, é um irmão que desde jovem saiu das Ilhas de Cabo Verde e assumiu sua missão de ser presença no meio do povo oprimido, mas isso tem um custo. Somos testemunhas do quanto Padre Assis é fiel ao evangelho, essa fidelidade que tem como prêmio a Cruz", diz o documento.
"O povo da Área Pastoral São José Operário, das Favelas, vem por meio desta carta externar nosso pedido de que seja 'revista a decisão' que penaliza não só o Padre Assis, mas todo o povo que caminha junto com ele entre os becos e vielas buscando testemunhar que a perspectiva do Reino de Deus é espaço de Misericórdia e não de castigo e que abençoar pessoas é sinal do amor de Deus", declarou o documento.
O manifesto foi escrito por lideranças de cinco comunidades carentes da região Episcopal Belém, onde o padre atua: Comunidades católicas São José Operário (favela de Vila Prudente), Nossa Senhora Aparecida (favela Jacaraípe), São Francisco de Assis (favela Ilha das Cobras), Nossa Senhora das Graças (favela Haiti) e Santa Terezinha do Menino Jesus (favela da Sabesp), todas na Zona Leste.
O que diz a Arquidiocese de São Paulo
De acordo com a Arquidiocese, o afastamento e disse que não se trata de uma punição ao padre, "mas, sim, uma medida cautelar, prevista nas normas da Igreja Católica, quando há uma irregularidade grave, do ponto de vista religioso, que precisa ser melhor esclarecida".
A instituição explica que o que causou a medida foi o possível delito canônico de "simulação" de um casamento, pois não houve o encaminhamento da celebração das uniões e não foi realizado o processo matrimonial, como determinam as normas eclesiásticas.
A Arquidiocese afirmou que o padre não poderia celebrar sem a autorização do bispo ou do pároco local. Também não poderia fazer a celebração junto com representantes de outras religiões sem receber uma "dispensa" para isso.
"O que causou a medida foi o possível delito canônico de 'simulação de sacramento' do Matrimônio, pois não houve o devido encaminhamento da celebração das mencionadas uniões, nem foi feito antes, como prescrevem as normas eclesiásticas, o regular 'processo matrimonial' para a verificação das condições para a realização válida e lícita dos casamentos, do ponto de vista religioso", diz a nota.
"O sacerdote não podia celebrar casamentos, ainda que fossem 'regulares', sem a devida autorização do bispo ou do pároco local. Nem poderia celebrar validamente em conjunto com ministros de outras religiões, sem a devida 'dispensa' para tanto. Tratou-se, portanto, da participação inteiramente irregular, do ponto de vista das normas da Igreja Católica, para uma celebração de casamentos", acrescentou.
A Igreja Católica paulista não menciona a questão dos casais gays no casamento e afirma apenas que "o fato ocorrido não consistiu apenas em uma benção dada às pessoas individualmente, que, certamente, não pode ser negada a ninguém que a pede. O que houve, na verdade, foi uma bênção às uniões civis ali realizadas".

"As pessoas presentes desejavam se casar e não apenas receber uma bênção. A Igreja tem o Matrimônio como um dos seus sacramentos e não permite que sejam dadas "simples bênçãos" que possam levar os casais a crerem ter contraído Matrimônio católico", declarou a nota.
Ainda segundo a igreja, a retirada da ordem ao padre poderá ser revertida após os fatos serem esclarecidos e a depender da aceitação do sacerdote de observar as normas da igreja. "As comunidades católicas da Vila Prudente continuarão a ser atendidas pastoralmente e a 'retirada do uso de Orde' ao referido Padre na Arquidiocese de São Paulo, como já dito, é cautelar, podendo ser mudada, após serem esclarecidos os fatos e as suas consequências e a depender da aceitação do sacerdote de observar as normas da Igreja", disse.
"A Arquidiocese de São Paulo lamenta o ocorrido e reforça que as medidas tomadas visam a tutelar a sacralidade do Sacramento do Matrimônio que, como ressalta o Papa Francisco, 'não é uma convenção social, um rito vazio ou o mero sinal externo de um compromisso', mas, sim, 'um dom para a santificação e a salvação dos esposos', sinal da união indissolúvel de Cristo com a Igreja", concluiu a nota.
Padre Assis
O religioso faz parte da Congregação Missionários do Espírito Santo. Antes de São Paulo, já viveu em Lisboa, Tefé (no Amazonas) e em Paris. Foi para a Vila Prudente auxiliar o padre Patrick Clarke, missionário irlandês e um dos fundadores do Movimento de Defesa do Favelado.
Ele tinha "uso de ordem" da Arquidiocese de São Paulo, uma permissão para exercer as funções religiosas na cidade, e que agora foi retirada. Nas comunidades da zona leste, os missionários atuam em uma creche, em um centro cultural que oferece aulas para as crianças da região e em um centro de reciclagem.
Padre Assis costuma dizer que o Jesus dele "é black, cola com os manos, pisa nos becos e nas vielas". Em entrevista ao músico João Gordo, contou que perdeu as contas de quantas vezes foi parado pela polícia e chamado de maconheiro antes de se identificar como padre. "Acho que minha pele incomoda".
Padre Assis é ativista dos direitos das pessoas negras, encarceradas e da comunidade LGBTQIA+Reprodução: redes sociais
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