Publicado 04/07/2023 21:49
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Brasília - É enganoso o trecho de um vídeo que circula nas redes sociais em que uma advogada afirma que "não existe contaminação de mercúrio no garimpo" e que "não é o mercúrio da mineração que contamina o peixe" na região amazônica. Na gravação original, ela se refere especificamente ao garimpo legal, o que foi cortado na versão compartilhada. Diversos estudos e análises já comprovaram que a atividade ilegal do garimpo é uma das responsáveis pela contaminação dos rios, dos peixes e, consequentemente, das comunidades ribeirinhas.
Conteúdo investigado: Em um vídeo retirado de um podcast, uma mulher identificada como advogada diz que "não é o mercúrio da mineração que contamina o peixe" ao falar da atividade garimpeira na região amazônica e que "não existe contaminação de mercúrio no garimpo". Ela completa afirmando que a contaminação de mercúrio é provocada por rochas que liberam o metal tóxico na água.

Onde foi publicado: TikTok e YouTube.

Conclusão do Comprova: É enganoso um vídeo que circula nas redes sociais em que uma advogada afirma que o uso de mercúrio no garimpo não é responsável por contaminar os cursos d’água nem os peixes da região amazônica.

No trecho que viralizou, ela afirma que a presença de mercúrio em alguns locais, como São Gabriel da Cachoeira e nos rios de Manacapuru (ambos no Amazonas), é natural, causada pela presença de tipos específicos de rochas. Embora o mercúrio exista naturalmente na região, estudos da Fiocruz, de universidades, entidades internacionais e autoridades brasileiras já comprovaram que a atividade ilegal do garimpo é responsável, ainda que parcialmente, pela contaminação dos rios, dos peixes e, consequentemente, das comunidades ribeirinhas.

A mulher que fala no vídeo é Tânia Oliveira Sena, advogada e presidente da Cooperativa dos Garimpeiros da Amazônia (Coogam). Ela foi uma das convidadas do Eco Podcast, que tem como apresentador o ex-deputado amazonense e ex-prefeito da cidade de Manacapuru (AM), Angelus Figueira.

No trecho que circula nas redes sociais, Tânia argumenta que o mercúrio no garimpo é utilizado em "circuito fechado" e que não vai para os rios. Segundo ela, a presença do metal tóxico em alta quantidade em alguns rios da região é devido às "rochas cinábricas" que "derramam mercúrio nos rios". O cinábrio é o nome popular do sulfeto de mercúrio.

No podcast, Tânia se referia ao garimpo legalizado, mas isso não fica claro para quem não ouviu a íntegra do programa e teve contato apenas com o trecho que circula nas redes sociais. Desta forma, o trecho dá a entender que não há nenhuma contaminação de mercúrio na natureza ou nos peixes causada pelo garimpo, o que não é verdade.

A Agência Nacional de Mineração (ANM) confirmou ao Projeto Comprova que a bacia do Rio Negro é um ecossistema que, independentemente de atividade humana, tem regiões com quantidades expressivas de mercúrio no solo e na água.

"Estudos demonstraram que elevadas concentrações desse elemento químico ocorrem principalmente nos solos podolizados, sendo o mercúrio derivado da decomposição das rochas presentes na região. Portanto, nessa bacia as altas concentrações de mercúrio são de origem natural", disse em nota.

Contudo, o órgão ressaltou que em outras regiões do país, inclusive na bacia amazônica, há a contaminação por mercúrio por meio do descarte da lama contaminada com o metal despejada pela atividade ilegal do garimpo.
No vídeo investigado, Tânia afirma, sem especificar o local sobre o qual se refere, que "estudos comprovam que a contaminação do mercúrio nos peixes está abaixo do permitido, muito abaixo do permitido". Pesquisas recentes mostraram que moradores de áreas ribeirinhas na bacia do rio Tapajós estão contaminados por mercúrio, que um em cada cinco peixes consumidos em seis estados da região amazônica estão contaminados pelo metal pesado e que em algumas espécies não há nível seguro para consumo. Todas elas atribuem a alta concentração de mercúrio à atividade garimpeira ilegal.

O uso do mercúrio é permitido nos garimpos de ouro, desde que seja autorizado pelo órgão ambiental. Procurada pelo Comprova, a presidente da Coogam, que fala no vídeo checado, disse que se refere no vídeo à mineração legalizada. "Tem muitas áreas legalizadas em Rondônia, Pará e Amazonas, conheço todas as áreas e conheço as dragas e sei como trabalham", disse Tânia ao Comprova.

A Coogam tem atualmente 43 autorizações de lavra garimpeira, principalmente no Amazonas, mas também no Pará e uma em Rondônia.

Para o Comprova, enganoso é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. A postagem no perfil @sou_amazonas no TikTok foi vista mais de 151,5 mil vezes e teve 5 mil likes até 3 de julho deste ano. Um short com o mesmo conteúdo no canal do YouTube teve 1,2 mil visualizações.

Como verificamos: Primeiramente procuramos saber quem era a mulher que falava no vídeo e qual foi o contexto da fala. A identidade dela foi encontrada ao buscar o nome que aparece na descrição do vídeo viral e o nome do podcast, que aparece em uma marca d’água no vídeo. Também foi encontrado o vídeo original, que tem uma hora de duração. Em seguida, buscamos informações a respeito do uso de mercúrio no garimpo junto à ANM. Também procuramos reportagens e estudos a respeito da contaminação por mercúrio nos peixes da região amazônica. Entramos em contato com Tânia Oliveira Sena e também com o host do podcast de onde foi retirado o vídeo.

O mercúrio e o garimpo
O mercúrio é um metal natural encontrado nos rios, solo, água e até no ar. Ele é utilizado em diversas atividades industriais, sob regras rígidas, por se tratar de um metal tóxico, com potencial de causar doenças graves em pessoas e animais.

Como explicou a ANM para a reportagem, o Brasil não produz mercúrio. A sua importação e comercialização são controladas pelo Ibama por meio da portaria 32 de 1995 e decreto 97.634/89. O regramento obriga o cadastramento no Ibama das pessoas físicas e jurídicas que “importem, produzam ou comercializem a substância mercúrio metálico”.

Também há regras para o uso do mercúrio na extração do ouro. O metal pesado tem a capacidade de se unir a outros metais, como o ouro, e formar amálgamas. Essas amálgamas são mais pesadas e podem ser mais facilmente separadas das partículas mais leves de terra. Uma vez separado da lama, um outro processo separa o ouro do mercúrio e este último é reutilizado.

Segundo o mesmo decreto de 1989 citado acima, é proibido usar mercúrio na atividade de extração de ouro, “exceto em atividades licenciadas pelo órgão ambiental competente”. Ele ainda exige a obrigatoriedade de recuperação das áreas degradadas pela atividade.

A ANM também esclareceu que a utilização do mercúrio em qualquer meio de produção exige cuidados rigorosos, como usar equipamento adequado para fazer a retorta (processo que separa o mercúrio da amálgama de ouro), usar equipamento de proteção individual e submeter trabalhadores da área a exames médicos e dentários para avaliar o índice de mercúrio no organismo.

Ainda de acordo com a agência, o uso correto de uma retorta de qualidade permite a recuperação de até 97% do mercúrio, sendo o restante permanecendo “grudado” no ouro amalgamado. Este percentual residual de mercúrio é retirado no processo de purificação do ouro.

Garimpo ilegal na Amazônia
Os garimpos ilegais, que usam mercúrio em excesso para viabilizar a separação do ouro dos demais sedimentos, causam a contaminação dos rios, dos peixes e, consequentemente, dos trabalhadores e comunidades ribeirinhas.

Uma pesquisa da Fiocruz com a Universidade Federal de Roraima (UFRR) e os institutos Socioambiental e Evandro Chagas mostrou que os peixes em Roraima são afetados pelo garimpo ilegal.

O mesmo texto diz que, segundo os especialistas, 45% do mercúrio usado nos garimpos ilegais é despejado sem qualquer tipo de tratamento nos rios e igarapés da Amazônia.

Outro estudo da Fiocruz, esse em parceria com o WWF-Brasil, apontou que todos os integrantes do povo indígena Munduruku, localizado no médio Rio Tapajós, estão afetados por este contaminante. De cada dez participantes da pesquisa, seis apresentaram níveis de mercúrio acima dos limites seguros.

A contaminação, ainda de acordo com os pesquisadores, é maior em áreas mais impactadas pelo garimpo, nas aldeias que ficam às margens dos rios afetados. Nessas localidades, nove em cada dez participantes apresentaram alto nível de contaminação.

A ingestão de mercúrio por meio de comidas contaminadas ou a inalação dos vapores afeta o funcionamento do sistema nervoso central, segundo especialistas ouvidos pela BBC. Efeitos podem incluir fraqueza, dificuldade de aprendizado, dificuldade para se locomover, problemas na visão e na audição.

A substância pode permanecer até cem anos na natureza, contaminando os rios e a terra, além de causar doenças em seres humanos e animais.

O que diz o responsável pela publicação: O anfitrião do podcast e o perfil @sou_amazonas, onde o vídeo foi publicado foram demandados, mas não enviaram resposta.

O que podemos aprender com esta verificação: É importante desconfiar de frases de impacto que vão de encontro ao que é divulgado por pesquisadores e autoridades. O trecho do vídeo que viralizou não deixa claro se a fala trata da mineração legalizada ou daquela feita de forma irregular. Assim, engana os leitores por dar a impressão de que não há nenhuma contaminação de mercúrio na natureza ou nos peixes provocada pelo garimpo, o que não é verdade.

Isso mostra a importância de entender o contexto de uma declaração para entender o sentido real da informação. Também é importante pesquisar quem é a pessoa que faz a afirmação para saber se há algum conflito de interesse daquele indivíduo ao falar do tema.

Por que investigamos: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.

Outras checagens sobre o tema: O Comprova já checou diversos conteúdos de desinformação que envolvem a região amazônica. Duas delas desmentiram supostas ações de venda da Amazônia (aqui e aqui) e outra desmentiu a existência de um diamante gigante que teria sido encontrado na área. Também já foram produzidos dois conteúdos explicativos a respeito da região, um sobre o funcionamento do Fundo Amazônia e outro sobre a crise humanitária envolvendo os povos Yanomamis.
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