Publicado 22/05/2024 19:20
A suíça Nestlé tem encarado a popularidade crescente de medicamentos supressores de apetite como uma nova oportunidade. Nesta terça-feira, 21, a empresa anunciou o lançamento de uma nova linha de produtos congelados projetados especificamente para pessoas que utilizam medicamentos "análogos de GLP-1?, hormônio responsável por regular a produção de insulina, os níveis de glicose no sangue e a sensação de saciedade - como é o caso do Ozempic e do Wegovy.
PublicidadeEm comunicado oficial, a Nestlé afirma que a nova linha, chamada ‘Vital Pursuit’ e disponível inicialmente apenas nos Estados Unidos, vai abranger uma série de alimentos congelados, como sanduíches, pizzas e macarrão. O diferencial, de acordo com a empresa, é que os produtos são desenvolvidos com mais proteína, ferro e cálcio, de forma a contribuir para que as pessoas usuárias de medicamentos supressores de apetite possam ter "mais controle sobre o equilíbrio de nutrientes ao mesmo tempo que consomem produtos com mais sabor e acessibilidade".
Com previsão de chegar às prateleiras estadunidenses em outubro deste ano, os produtos custarão em torno de U$4,99 (aproximadamente R$25). A ideia, segundo o CEO da Nestlé na América do Norte, Steve Presley, foi movimentada pelo conhecimento sobre consumidores e sobre a ciência nutricional, o que colabora para que a empresa se mantenha "à frente das tendências que estão moldando o comportamento das pessoas, o que também contribui para inovação do portfólio da empresa".
No pronunciamento, a empresa suíça também aproveitou para compartilhar dados relacionados ao uso de medicamentos análogos de GLP-1 nos EUA: de acordo com a American Pharmacists Association, um em cada 60 adultos recebeu prescrição de algum tipo de medicamento do gênero em 2023, e a expectativa é que o número seja superior em 2024. Além disso, a JP Morgan Research prevê que o total de usuários desse tipo de medicamento no país norte-americano poderá atingir os 30 milhões até 2030 - ou seja, cerca de 9% da população estadunidense.
Tom Moe, presidente da divisão de refeições da Nestlé nos EUA, por sua vez, afirmou que irá promover as refeições como "soluções alimentares", já que os produtos são voltados para pessoas que desejam complementar o uso dos medicamentos com a "nutrição certa, elevada em proteínas, fibras e minerais, como potássio e vitamina C". Ele também mencionou que, embora os produtos ainda não estejam disponíveis no mercado, a empresa já tem planos de expandir a linha Vital Pursuit com novas opções.
O que dizem os especialistas
Na opinião do endocrinologista Bruno Geloneze, professor da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a nova linha de produtos lançada pela empresa suíça não representa uma vantagem para pessoas que fazem uso de medicamentos como Ozempic, mas sim uma estratégia de marketing, guiada por um momento em que o consumo de certos produtos alimentícios vai caindo em virtude do uso cada vez maior de medicamentos supressores de apetite. A empresa, contudo, não nega a perspectiva. No comunicado oficial, em meio aos inúmeros ‘benefícios’ citados pelos executivos representantes, ela afirma: "Como a maior empresa mundial de alimentos e bebidas, a Nestlé está na vanguarda do crescente marketing de mercado".
De acordo com Geloneze, o uso de medicamentos como o Ozempic, que no Brasil chegou a enfrentar indisponibilidade intermitente devido a uma demanda maior que a prevista, não deve ser visto apenas como uma ferramenta para emagrecimento, mas também como um meio de promover um planejamento dietético adequado - quando prescrito corretamente. Isso porque, ao aumentar a saciedade e reduzir o impulso alimentar, esses medicamentos se tornam facilitadores para que as pessoas organizem uma alimentação mais nutritiva e saudável, o que vai na contramão do que é oferecido pelo alimentos ultraprocessados, como biscoitos, salgadinhos, refrigerantes, embutidos, e produtos prontos para consumo, como os congelados.
"O grande ponto do uso dos análogos de GLP-1 é que eles obrigatoriamente devem ser utilizados junto com um planejamento dietético e comportamental. A possibilidade de recorrer a esse tipo de medicação não deve existir se não houver esse preceito. Isso inclui o consumo máximo de alimentos in natura, como verduras e legumes, e o mínimo possível de alimentos industrializados, que é exatamente o que a Nestlé vai continuar produzindo sob o mote de serem enriquecidos com micronutrientes, provavelmente em quantidades muito baixas", afirma Geloneze.
A Nestlé, por sua vez, não detalhou as especificidades dos produtos, afirmando apenas que concentrarão mais ferro, cálcio e proteína, sem especificar as quantidades.
Segundo a nutricionista Desire Coelho, colunista no Estadão, um dos riscos do uso de medicamentos como Ozempic e Wegovy é que, muitas vezes, os pacientes, acabam deixando de consumir os nutrientes necessários, já que se sentem mais saciados - e isso pode colaborar com uma deficiência nutricional. Nesse contexto, se tivermos produtos realmente enriquecidos com proteína, ferro e cálcio, como proposto pela empresa suíça, eles podem, sim, ser considerados como vantajosos pela praticidade. Contudo, a especialista considera difícil que esses itens sejam superiores em relação aos já disponíveis no mercado. Além disso, ela acredita que sempre teremos opções melhores e mais saudáveis do que os famosos congelados.
"No fim, a proposta da empresa acaba criando, indiretamente, uma necessidade e uma ansiedade, como se o consumo desses produtos fosse essencial para os usuários dos medicamentos supressores de apetite, o que não é verdade", avalia Desire. "É importante que as pessoas se preocupem não apenas com a quantidade de proteínas, mas com a qualidade geral dos alimentos, o que pode ser facilmente alcançado com boa orientação e organização alimentar, sem depender de suplementos ou alimentos da moda", completa a especialista.
Outro ponto levantado por Geloneze, que também é membro da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica (Abeso), é que os produtos da Vital Pursuit podem contribuir para o aumento dos índices de obesidade, uma questão especialmente relevante nos Estados Unidos, País apontado como o terceiro com maior percentual de adultos convivendo com essa condição, segundo o Atlas Mundial da Obesidade 2024, com dados de 186 nacionalidades.
Procurada pelo Estadão, a Novo Nordisk, farmacêutica responsável pela produção dos medicamentos Ozempic e Wegovy, não quis comentar o assunto. Também procurada, a Nestlé Brasil foi questionada sobre o possível lançamento da nova linha de produtos no Brasil, mas a empresa apenas reforçou as informações divulgadas pela Nestlé EUA, que estão restritas à chegada dos novos produtos no país norte-americano.
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