Parece que é inadiável aderirmos a tudo isso. Mas logo depois de consumirmos algo, seremos apresentados a novos costumesArte: Kiko
Publicado 23/06/2024 09:00
Acordei sem alarme nem horário certo para me levantar. Um amanhecer calmo, sem preocupações. Não demorei para fazer a minha primeira incursão do dia pelas redes sociais, quando dei de cara com o vídeo de divulgação de 'Divertida Mente 2'. A atriz Miá Mello, que dubla a Alegria, começava a falar animadamente: "Oi, pessoal! Eu tô muito feliz e muita empolgada porque hoje eu vou contar uma coisa incrível!" Logo surgiu a Tatá Werneck, que faz a voz da Ansiedade na versão brasileira, interrompendo a colega. Confesso que não sei se entendi bem a primeira fase, pronunciada rapidamente por ela: "Nossa, que introdução longa, né?" E continuava: "Eu tô muito ansiosa. Só quero contar quem são os dubladores do filme 'Divertida Mente 2'. Desculpa, interrompi a Miá? Desculpa".
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Logo me identifiquei com a personagem dublada pela Tatá. No filme, ela é laranjinha, de cabelos para o alto. Acredito que seja cheia de ideias, questões e... muito futuro! Sim, eu também atropelo a fala das outras pessoas. Tanto que, assim que conheci o meu namorado, fiz questão de lhe antecipar esse meu 'defeito'. Afinal, eu tinha pressa de revelar o que ele descobriria em poucos minutos de conversa. Ah, as nossas urgências! São tantas hoje em dia. Todas para ontem, embora morem no futuro. Será que dá para ficar bem com esses pensamentos?
Aliás, na mesma rede social em que me deparei com uma prévia do filme — que, é claro, aguça a nossa expectativa —, também percebi várias situações que intensificam o mundo em que vivemos. Felizmente, venho trabalhando esse olhar mais distante, apesar da minha presença por ali. Consigo perceber o quanto nos apresentam urgências que nunca tivemos — a roupa da moda, o sapato que é tendência, o lugar para onde todos estão indo. Por que não estamos fazendo o mesmo? Esta é a pergunta que nos estimulam a fazer a todo instante.
Parece que é inadiável aderirmos a tudo isso. Mas logo depois de consumirmos algo, seremos apresentados a novos costumes. Todos reforçados pelos imperativos que permeiam as redes: 'Não use essa roupa de tal forma', 'Não faça isso no primeiro encontro', 'Não acene dessa forma para não ser deselegante". Será que dá para ficar bem com tantas ordens?
Para mim, a reflexão é a boia que me mantém na superfície desse mar revolto. A crônica, como esta aqui, me salva e me captura para o presente. Este texto, por exemplo, começou a ser escrito mentalmente no mesmo dia em que vi a divulgação de 'Divertida Mente 2'. Eu me percebi no presente. Pensando na crônica futura, sim. Mas em uma reflexão que abre os meus olhos para o mundo.
Graças à escrita, ando por aí olhando o que está acontecendo no momento em que cada coisa se manifesta diante dos meus olhos. Aguço os ouvidos no papo durante as aulas de pilates ou na fila do caixa de uma loja em Caxias, onde uma cliente dizia: "Hoje tenho uma apresentação no curso que faço. Vai dar tudo certo, mas a gente quer que se concretize logo, né?"
Não posso dizer que estou imune às urgências. Até me lembro de uma vez, depois de um bom tempo de terapia, em que falei na sessão sobre a mania de tirar fotos do fogão e do ferro de passar a roupa para ter a garantia, na rua, de que havia deixado tudo desligado. E só aí me dei conta de que esse ritual era a tal ansiedade. A minha memória se revelava insuficiente para me garantir que a casa não pegaria fogo.
De outro modo, também passei a ter pressa para descobrir se alguma pessoa que me cerca é ou não confiável. Alimentei a urgência de lhe mostrar que sabia de suas mentiras e omissões. Mas também constatei que é impossível controlar isso. Assim, tento me apegar à ideia de que a conduta do outro diz muito mais sobre ele do que sobre mim.
Pelo menos, não tenho problema para dormir. Ouço relatos de quem custa a pegar no sono, pensando em mil questões justamente quando a cabeça deita no travesseiro. Eu, felizmente, já era sonequinha quando criança. Da mesma forma, também agradeço por chorar! Acho que as lágrimas extravasam a nossa pressa. Aliás, ao ver Tatá divulgando o filme, entendi também o motivo de o meu pai dizer que falo tudo embolado. Talvez eu queira colocar mais palavras no tempo do que ele realmente comporta.
Algumas urgências, no entanto, já serenaram para mim. O pavor de errar já não me pertence. Se somos falhos e imperfeitos, como buscar algo que inexiste? Por outro lado, escrevi esta crônica no mesmo dia em que vi a tal divulgação de 'Divertida Mente 2', antes mesmo de ver o filme. Seria esse mais um sinal de ansiedade?
No entanto, por mais lúdico que seja o universo do filme, precisamos ter em mente que a ansiedade fora do controle precisa ser olhada com muito carinho e tratamento profissional. Qualquer patologia deve ser cuidada para que todas as outras emoções ganhem chance dentro de nós.
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