Ele também adorna folhas da Espada de São Jorge com palavras. Algo muito simbólico, já que a planta tem a fama de proteger contra as energias negativasArte: Kiko
Publicado 13/10/2024 12:00 | Atualizado 13/10/2024 21:09
Quando uma grande amiga da época da faculdade me falou sobre a exposição do artista Marcio de Carvalho, o Mar do Vale, em uma galeria no Arco do Teles, em março, no Centro do Rio, a mostra já estava em seus últimos dias. "Quero muito ir. É a sua caraaa", ela me escreveu — assim mesmo, repetindo as últimas vogais. Aliás, também utilizo esse recurso como forma de enfatizar o que quero dizer. Outro dia, inclusive, um colega de profissão revelou que acha graça quando eu respondo as mensagens com "Simmmmmm". Ele contou que se lembra da famosa brincadeira do foguetinho do programa Silvio Santos, quando a criança ficava em uma cabine com um fone no ouvido, sem ouvir as propostas do apresentador, mas tinha que responder 'Sim' ou 'Não' para escolher seu prêmio.
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Voltando à exposição, acabei não conseguindo conferir as obras de perto. Mas minha amiga foi à mostra e compartilhou algumas fotos. Mar do Vale é um artista que trabalha basicamente com a palavra na sua essência: pura, muitas vezes sem complemento. Assim, ele pinta no concreto do Rio de Janeiro com tinta branca, escrevendo por aí verbos como acalmar e sentir ou substantivos como afeto. Todos cheios de sensações e fotografados pelos pedestres da cidade. E a paisagem ganha mais sentido.
Ele também adorna folhas da Espada de São Jorge com palavras. Algo muito simbólico, já que a planta tem a fama de proteger contra as energias negativas. Assim também surgem as palavras de bem-querer, como um afago na dureza da vida. Elas, aliás, nascem entrelaçadas no sentimento. Curiosamente, eu me lembro de algo que a minha mãe sempre me dizia. Ela dispensava o chamamento de senhora e assim me explicava: "O que é melhor? Que alguém diga: 'Eu admiro muito você' ou 'Eu odeio a senhora'?". Minha mãe era professora de Português e também mestre na arte da convivência. Com ela, aprendi que os pronomes de tratamento podem até indicar formalidade, mas nem sempre representam admiração.
Um tempo depois, a mesma amiga me enviou outro post de Mar do Vale com a mensagem: "Olha o cara das palavras. Ele está em todas". Pensei em como deve ser belo ser conhecido dessa forma em uma época de tantas vozes e poucos diálogos. Parece que muitos querem dizer, mas poucos se dispõem a ouvir. E as palavras do artista, por mais que pareçam estáticas, sempre estão em movimento quando encontram alguém que as leia.
Com a vida, também fui percebendo que era mesmo na escrita o meu lugar. Afinal, as palavras me aceitam como sou e não me pedem rudeza. Posso ser doce, delicada e sensível, algo que quase acreditei que precisava reprimir em mim mesma. Admito, no entanto, que não é fácil dizer. Às vezes, até parece mais fácil dar uma resposta rude, como forma de defesa, do que nos desarmar daquilo que nos ofende para dizer algo de bom.
Curiosamente, nasci tímida, mas hoje não economizo mais palavras. Até brinco dizendo que amo ler poemas, mas não sei escrevê-los. Assim, escrevo em prosa e sigo leitora dos versos. Também amo presentear as pessoas com textos e, dessa forma, mostrar o quanto as admiro.
É verdade que, às vezes, alguma frase fica engasgada. Já fiquei ensaiando formas de ser entendida e imaginando qual seria a reação do outro. Mas sempre aposto no melhor dom das palavras, que vi traduzido numa linda pintura de Mar do Vale dedicada ao seu filho. No casco de um barco, lia-se: "colo". Também acredito nisso: aquilo que dizemos e escrevemos pode ser um belo aconchego.
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