Publicado 27/10/2024 09:00
'Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado...'
PublicidadeEm cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado...'
Os versos do poema 'Guardar', de Antonio Cícero, logo surgiram para mim no feed do Instagram na última quarta-feira. Horas antes, havia chegado a notícia da morte do poeta, na Suíça. Estava acompanhado de seu companheiro, Marcelo Fies. Com Alzheimer, escreveu uma carta aos amigos antes de partir, em uma morte assistida e legalizada no país europeu. Não quero nem me cabe comentar sua decisão. O que enterneceu ainda mais o meu coração foi que, a partir da sua mensagem, pensei na despedida da memória por conta da doença. Em deixar de reconhecer as pessoas ao nosso redor, as referências do passado, de onde partimos e o que constituiu a nossa existência até aqui. Eu, que amo lembrar, fiquei pensativa e, agradecendo, a sós, por recordar.
Curiosamente, estive no início da semana passada na exposição 'Fullgás — Artes Visuais e Anos 1980 no Brasil', no CCBB-RJ, batizada justamente com o nome da música que Cicero fez com a irmã, a cantora Marina Lima. Foi um sucesso tremendo daquela época, tema da mostra. Assim como 'Pra começar' e 'À Francesa', também de autoria do compositor. Dessa forma, as obras expostas no centro cultural ainda estavam fresquinhas na minha lembrança: a réplica do capacete de Ayrton Senna e os vinis de Xuxa, Legião Urbana e Turma do Balão Mágico, entre tantos outros.
Pensei ainda que, às vezes, a gente banaliza a capacidade de lembrar — ou até luta contra ela. Mas que bom foi ter visto, lá na exposição, uma televisão das antigas, colocar um fone de ouvido e assistir novamente à abertura da novela 'A gata comeu': "Ela comeu meu coração/ Trincou, mordeu, mastigou, engoliu, comeu/O meu". Não foi à toa que, ainda naquela manhã de quarta-feira, durante minha aula de pilates, recordei a música da banda Metrô: "E no balanço das horas tudo pode mudar..." Logo depois, veio Ritchie: "Não esqueci seu nome, seu rosto, sua voz/ Outro dia, eu te vi numa tarde tão veloz". Olha a lembrança aí presente, de novo. Que bom ter exposições para reverenciar épocas. Que sorte ter curadores que se debruçam sobre um longo trabalho para reunir mais de 700 objetos e obras de quase 250 artistas. Tudo isso para reviver uma era.
Graças à capacidade de recordar, sempre que passo na orla da Praia do Leblon, na Zona Sul do Rio, olho para os prédios ali construídos e me vêm à memória os versos eternizados na voz de Marina Lima, também na década de 80: "O Hotel Marina quando acende..." Graças ao poder da lembrança, admirei as mãos adornadas pelas dobrinhas do tempo quando uma senhora, no Centro do Rio, pegou um CD da Tina Turner exposto em uma banca de jornal.
Fiquei pensando que reconhecer algo na memória é confirmar que parte da estrada foi percorrida. Identificar pessoas do cotidiano e as que marcaram nossas vidas é especial. Confesso que, vez ou outra, ainda me pergunto se devo colocar nos meus textos mais alguma lembrança da minha mãe. "Será que vão achar repetitivo?", penso. Mas em boa parte das vezes em que fiz isso, alguém se identificou com o meu relato, e assim continuo. Rememorar uma pessoa que partiu é mantê-la viva no coração. Como escreveu Cicero, guardar uma coisa é "iluminá-la ou ser por ela iluminado".
Sou da tese de que precisamos guardar as memórias jogando sobre elas a luz da saudade, que também clareia nossos passos. Como tantas pessoas fizeram na quarta-feira ao reverenciarem a trajetória do poeta através dos seus poemas e músicas. Ou como podemos fazer diariamente, imortalizando a vida de quem amamos.
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