Compreendi o enunciado, mas acho bonito imaginar que Rita não tinha uma estratégia. Ela era empática por essência e isso se refletia no textoArte: Kiko
Publicado 10/11/2024 09:00
Tenho uma foto específica da juventude eternizada na memória. Deve estar guardada em uma das gavetas da minha casa, entre toalhas e outros itens. Nela, apareço em uma praia de Rio das Ostras ao lado da minha mãe. Estávamos sentadas em cadeiras na faixa de areia. Não havia os quiosques atuais ao fundo. Ela estava linda, sorridente, de óculos escuros e maiô. Tinha a alegria da juventude madura, que só descobri recentemente. Talvez eu estivesse na adolescência, não sei precisar bem, mas eu aparecia de cara emburrada, canga enrolada na cintura, com tecido indo até os pés, e uma blusa de malha branca, larga e com mangas chegando até os cotovelos.
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Essa cena me faz lembrar de momentos em que eu me achava feia. Meu cabelo era feio, eu era feia, tudo em mim era feio. Quer dizer, assim eu pensava. Estava deslocada do mundo, como acontece em certas fases da vida, especialmente quando não temos tanta estrada percorrida.
O fato é que nunca foi fácil ser jovem e digo isso com o privilégio de ter sido uma adolescente que poderia se dedicar aos estudos e ter um dia de praia com cara emburrada ao lado da mãe sorridente. Muitos, no entanto, nem podem se dar a esse luxo. Precisam trabalhar, ajudar nas contas de casa, levar comida para a família. Precisam sobreviver. Ser jovem sem oportunidades ou luzes no fim do túnel é doloroso. Inclusive, contraria o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Tudo isso me veio à memória após refletir sobre uma das questões do primeiro dia do Enem, no último domingo. A prova citava um trecho do livro 'Rita Lee: Outra autobiografia', de 2023, em que a saudosa cantora falava sobre as cartinhas recebidas dos fãs mais jovens. A questão pedia que o candidato escolhesse, na múltipla escolha, a opção que demonstra a postura de empatia usada como estratégia para se aproximar do leitor. Compreendi o enunciado, mas acho bonito imaginar que Rita não tinha uma estratégia. Ela era empática por essência e isso se refletia no texto.
"Sinto que é mais complicado ser jovem hoje, já que nunca tivemos essa superpopulação no planeta: haja competitividade, culto à beleza, ter filho ou não, estudar, ralar para arranjar trabalho, ser mal remunerado, ser bombardeado com trocentas informações, lavagens cerebrais..." Inclusive, pelos gabaritos extraoficiais, parece que a resposta certa é a que traz parte dessa passagem do texto.
De fato, hoje estamos bombardeados "com trocentas informações". Penso que vivi um tempo sem tantas facilidades por um lado, mas outras tantas de outro. Tinha a vantagem de não sentir a agonia de um mundo que não para e não nos deixa parar. Hoje, no mesmo dia em que se termina uma prova de acesso à faculdade, são feitas lives para revelar as respostas certas. É instigante saber — e assim se parabenizar, se culpar ou se comparar com o outro — logo depois de entregar o seu exame. O tempo de hoje não nos dá tempo para nada.
Ouso dizer que eu não queria ser jovem no mundo atual. Que bom que os meus dilemas, a minha foto emburrada toda vestida na praia e os meus tempos me achando feia estão dentro do meu coração ou em uma foto de papel guardada em uma gaveta de casa. Que bom que não vivi a juventude com a sedução de postar recortes de um tempo que nem eu entendia muito bem. Hoje eu uso redes sociais, mas sempre no dilema entre mostrar algo que eu queira e, ao mesmo tempo, não expor minha vida. Tenho 47 anos e já me vi caindo nas armadilhas da vaidade por uma 'curtida'. Imagine exigir esse controle de um jovem que se acha inadequado de várias formas?
Inclusive, também cheguei a ver uma empatia genuína em outra parte do texto citado no Enem em que Rita Lee afirma: "Diria que não é sinal de saúde estar bem-adaptado a uma sociedade doente". Por um lado, imaginei ela sendo solidária ao mundo cheio de mazelas enfrentadas pelos jovens atualmente. Ao mesmo tempo, ponderei que ela deve ter crescido diante de enfermidades de outra natureza. E, assim, o lugar do leitor se confunde com o dela. Uma empatia mútua, eu diria. Talvez eu marcasse essa opção. E erraria.
Certa mesmo está a rainha do rock brasileiro quando nos diz que é humano não se encaixar em cenários adoecidos, especialmente os que nos pedem imediatismo e perfeccionismo. É bela a forma como Rita, que viveu outras durezas da vida em sua juventude, se solidariza com o caos mental que todos sentimos hoje, em menor ou maior escala, jovens ou não. É saudável se sentir estranho em alguma medida. É muito possível não saber as respostas certas — no vestibular e na vida. Não sei várias delas e morrerei sem saber. Não por falta de vontade, mas por ter entendido que nenhuma jornada vem com gabarito.
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