Cesário Melantonio NetoDivulgação
Publicado 27/01/2023 06:00
Dois momentos vividos pela Alemanha na semana passada, ligados a duas das maiores crises globais do momento, ainda que não tenham relação direta entre si, ajudam a ilustrar o momento delicado da coalização de Olaf Sholz. Um foi a primeira troca de peso no gabinete, com a posse do social-democrata Boris Pistorius no Ministério da Defesa, ante a pressão internacional para Berlim agir de modo a influenciar o futuro da guerra na Ucrânia.
É importante para o Brasil acompanhar de perto esta crise de identidade do governo alemão no momento em que se aproxima a data da visita de Olaf Scholz a Brasília. Outro fato relevante foi a detenção, por algumas horas, de Greta Thunberg em um protesto que simboliza as críticas pela condução que Berlim faz da crise climática. Esta última cobrança tem remetente e destinatário claros.
Ativistas reclamam da posição do Partido Verde em relação a Lützerath, vilarejo que será demolido para a ampliação de uma mina de carvão. A questão, que se intensificou na semana passada, quando o esvaziamento da área teve início, atraiu mais olhares com a presença nos protestos da sueca fundadora do Fridays for Future – a polícia foi chamada para dispersar manifestantes e confrontos deixaram feridos durante o episódio.
Ao lado de Greta no local estavam membros da seção alemã do Last Generation, grupo responsável por atos contra obras de arte em museus europeus. “Os Verdes apunhalaram o movimento climático pelas costas em Lützerath. A confiança foi quebrada, e o pré-requisito mais importante para nossa convivência foi violado”, afirmou o ativista Raphael Thelen.
As críticas vêm também da própria legenda Verde que assinou uma carta aberta a Mona Neubaeur, vice-premiê da região da Renânia do Norte-Westfália, onde fica o vilarejo, e a Robert Habeck, ministro da Economia e Clima, ambos Verdes. “O acordo negociado com a empresa RWE ameaça romper com os princípios do nosso Partido Verde, com o Acordo de Paris, o pacto da coalização de governo e com a última confiança do movimento pela justiça climática”, diz o texto.
No ano passado, Habeck e Neubauer costuraram um acordo com a RWE, operadora da extração de carvão, que autorizava a demolição da vila de Lützerath e preservava outras cinco. Ao mesmo tempo, Berlim se comprometeu em antecipar o fim da exploração do material em oito anos para 2030. A medida, argumentam, faz parte da estratégia de buscar autonomia energética em relação à Rússia, uma urgência depois da guerra.
O ministro da Economia, também vice-primeiro-ministro de Scholz, chamou o acordo de “compromisso doloroso realmente difícil”, mas ponderou que “tinha que ser assim para garantir a segurança energética”. Ativistas afirmam, porém, que o texto erra ao não prever limites para a quantidade de carvão extraído e veem como saída acelerar a transição para fontes de energia renovável.
Em discurso este mês no Fórum Econômico Mundial, em Davos, Scholz deu destaque ao tema e disse “seja líder empresarial, ativista climático ou especialista em política de segurança, é claro para todos nós: o futuro pertence às energias renováveis. Por razões de custo, ambientais e de segurança”.
Os acontecimentos em Lützerath se juntam a uma lista de contradições que os Verdes abraçaram desde que passaram a integrar o governo – após uma ausência de 16 anos e mais ainda desde que a guerra na Ucrânia começou em fevereiro de 2022. O partido, que tem origem em movimentos pela paz, precisou deixar de lado campanhas contra gastos militares, usinas nucleares e combustíveis fósseis como gás, petróleo e carvão.
No último ano, os Verdes viram Scholz anunciar um aumento de cem bilhões de euros em gastos militares, a construção de terminais para importação de gás liquefeito de fontes como o Qatar e o adiamento do fechamento das últimas usinas nucleares.
Na coalizão, as dificuldades das últimas semanas não se restringem aos Verdes. O parceiro menor da aliança que sustenta Scholz, o Partido Liberal Democrático (FDP), tem seu líder o ministro das Finanças, Christian Lindner, sob suspeita de conflito de interesses por um discurso feito em favor de um banco privado de quem havia recebido um empréstimo.
Já o Partido Social Democrático (SPD) viu a titular da Defesa cair, soterrada por críticas. Pistorius, o substituto de Christina Lambrecht, assumiu com a gestão admitindo que a prioridade será o desafio de lidar com a pressão para que a Alemanha envie tanques à Ucrânia. Pressão de aliados internacionais e de dentro da coalizão, visto que Habeck já se declarou favorável à liberação para que a Polônia, Finlândia e Grécia possam enviar blindados alemães para o front.
Os Verdes, o FDP, a oposição e especialistas alemães estão faz tempo defendendo uma posição mais ambiciosa na defesa da Ucrânia. Parte do SPD hesita em repensar a relação da Alemanha com a Rússia, com a esperança de uma solução diplomática que poderia ter ocorrido antes e deixa Scholz mais hesitante.
O governo alemão chegou com uma agenda transformadora, de preparar o país para um futuro neutro em carbono. É algo muito ambicioso, mas também é uma coalizão com muita diversidade. Disputas iriam surgir independentemente do mundo lá fora!
Cesário Melantonio Neto
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