Publicado 14/04/2022 06:00
A frase atribuída a Dostoiévski expressa uma verdade crua, “é possível julgar o grau de civilização de uma sociedade visitando suas prisões”. Segundo os entendidos, a citação não é dele, mas o grande autor de 'Crime e Castigo e Recordação da Casa dos Mortos' bem poderia ter feito tal constatação.
Um povo que despreza os seus prisioneiros e os mantêm em situação de barbárie não pode ser chamado de civilizado. O cidadão que, desafortunadamente, é condenado ao cárcere perde a liberdade, mas ainda mantém o direito à dignidade e todos os demais que lhe são inerentes. Se o Estado não consegue manter os seus aprisionados, que estão sob sua responsabilidade, com o exercício rigoroso dos direitos e garantias constitucionais, é porque faliu.
O Supremo Tribunal Federal (STF), em sessão plenária iniciada no dia 27.08.2015, fez um dos julgamentos mais importantes, simbolicamente, da sua história: o relator da ADPF 347, ministro Marco Aurélio, considerou o estado de coisas inconstitucional e condenou o Estado brasileiro pela miserabilidade do sistema penitenciário. Uma decisão que engrandeceu o país aos olhos das nações civilizadas, mas que, infelizmente, não teve nenhum efeito prático nas masmorras medievais que são as prisões no Brasil.
Inclusive, apoiados, entre outros argumentos, na tese vitoriosa na Corte Suprema, fomos compelidos, em um processo que advogamos no exterior, a bater às portas do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, em Strasbourg, na França, para impedir a extradição de um nacional brasileiro, alegando a afronta aos direitos mínimos a que seria submetido o cidadão se viesse cumprir pena nos presídios brasileiros. E a liminar foi concedida. Imagine o constrangimento de expor, nos foros internacionais, o horror macabro das prisões em solo pátrio.
Quando ajuizamos a Ação Direta de Constitucionalidade 43, buscando manter o direito constitucional da presunção de inocência, não o fizemos, como erradamente se apregoou, para beneficiar o ex-presidente Lula. Na verdade, à época, Lula não era sequer condenado. Fizemos pelo inconformismo da tétrica situação de verdadeira calamidade dos presídios e cadeias do Brasil: somos o 3º país do mundo em número de presos, 800 mil, sendo 1/4 deles sem culpa formada. O Lula se beneficiou e se livrou solto, mas o que nos embalou foram os milhares de “Silvas” que vivem amontoados como animais em situação lamentável.
Nesta semana, a grande mídia deu destaque aos “privilégios” do ex-governador Sérgio Cabral, preso em 17.11.2016, porque encontraram um isolamento térmico de isopor no teto de sua cela para tentar fugir do calor carioca de mais de 40°C. As matérias deveriam ser no sentido de denunciar as autoridades que mantêm os prisioneiros em situações, muitas vezes, piores do que os escravos nos tempos da escravidão. A verdade é que mais de 60% da população carcerária é negra e desassistida. São os invisíveis da sociedade. Os responsáveis por esse estado de coisas preferem não ver que estão cometendo barbáries diárias e que se bestializaram.
Faço essas divagações em um momento em que o país está brutalmente dividido numa eleição presidencial. De um lado, a proposta fascista que visa exterminar todos os direitos dos trabalhadores e dos cidadãos e, claro, com um solene desprezo aos aprisionados. O que me inquieta é que o lado progressista foge do tema incômodo. Como se a busca por um mundo mais justo e solidário não passasse por uma completa modificação no nosso sistema prisional. Um pensamento atribuído a Gandhi, e que também não é dele, serve para reflexão: “A verdadeira medida de qualquer sociedade pode ser encontrada em como ela trata seus membros mais vulneráveis”.
Só mesmo nos recorrendo a frases de autoria desconhecida é que a realidade hipócrita, na qual ninguém assume suas responsabilidades, pode ser exposta, para nos fazer pensar e, talvez, ter vergonha dos tempos que vivemos.
Chega a doer ler Mia Couto, no poema Versos do Prisioneiro (1):
“Deixei de rezar. Nas paredes rabiscadas de obscenidades nenhum santo me escuta. Deus vive só e eu sou o único que toca a sua infinita lágrima. Deixei de rezar. Deus está numa outra prisão.”
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay
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