Publicado 27/06/2024 00:00
Existe uma vida, especialmente no verão, longe dos cafés de Paris. Para quem, como eu, que gosta de sentar-se em um café com um livro, ler um pouco, tomar um copo e ficar vendo a vida passar, modorrentamente, à sua frente na calçada, é quase inadmissível tudo isso que pulsa em Paris. Com a proximidade das olimpíadas, a cidade se vestiu com outras cores. Frenética e com um trânsito que desafia o humor já instável do parisiense. Para o turista, tudo continua sendo uma festa e até trocar o vinho pela cerveja tem certo charme. À beira do Sena, as pessoas parecem querer, de alguma maneira, correr contra o tempo e deixarem-se levar pelas águas caudalosas do rio. Todo o mistério das águas escuras torna ainda mais insondável a vida de quem se dedica a flanar pelas ruas de Paris.
PublicidadeUm projeto ambicioso de 3 bilhões de euros promete deixar o Sena apto para banhar. Parece que esqueceram-se de combinar com o rio, que está cada vez mais revolto e quase bravo com suas águas que abraçam a cidade e nos envolve a todos, como que a nos lembrar de que vale a pena viver. As águas, que descem rumo ao mar, nos fazem companhia e, de alguma forma, nos inquietam e nos intrigam. O Sena tem uma vida própria que dá um certo sentido às angústias de quem ama Paris. Não são os parques, nem os grandes boulevards e nem o brilho da torre Eiffel que dão o aconchego; são as águas desse rio que têm vida. Como em um poema, ele abraça e logo solta, nos fazendo correr com ele como se fizéssemos parte do rio.
Fazer parte do dia a dia de uma cidade exige a coragem de se entregar aos sonhos mais intangíveis. Não querer definir nada e muito menos controlar. Apenas virar água e se deixar levar como que a desafiar os nossos limites. Como Pessoa, ter um carinho especial pelos rios que correm no nosso imaginário. E lembrar de Leão de Formosa, que cantou o rio da aldeia dele e disse “que o Paranaíba é um rio triste, ensinou-me que o tempo não existe”.
Parar o tempo de repente é deixar de sofrer um pouco e, talvez, esquecer a imensidão dos nossos problemas. É não olhar as milhares de pessoas que estão morando nas ruas, é não se ligar por instantes nas guerras que nos sufocam, é não ver a extrema direita que teima em emburrecer o mundo, é apenas querer ser parte do rio e deslizar sem se importar de ter as margens a nos dar limites. Apenas esquecer de tudo, como se fosse possível, num átimo, não ter mais memória. Nem mesmo sonho. Só ser água cumprindo, dolentemente, um destino. Sabendo que em algum ponto vou desaguar no mar e ser protegido pela imensidão que me aguarda. É poder ser, perigosamente, indecifrável como os olhos vagos de uma pessoa idosa que você ama com Alzheimer.
Como nos lembrou Helena Kolody: “Quem é essa que me olha de tão longe, com olhos que foram meus?”.
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay
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