OPINA26SETARTE KIKO
Publicado 26/09/2024 00:00
“É o tempo de travessia: e se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.”
Fernando Pessoa
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O Brasil é um país de apaixonados. Mesmo em áreas nas quais a paixão deveria ser contida, há um uso desavisado de posturas e atitudes que extrapolam a racionalidade. No Poder Judiciário, a mega exposição de seus membros, especialmente dos ministros do Supremo Tribunal, proporciona, às vezes, espetáculos em que os julgamentos são levados a ferro e fogo como uma disputa quase pessoal.
Acompanhamos momentos transmitidos pela TV Justiça que seriam cômicos, se não fossem trágicos. Televisionar casos penais é um fator de desestabilização dos julgamentos. Além de representar uma condenação acessória, sem previsão legal. Quem é submetido a um processo criminal divulgado para todo o Brasil, ainda que logre êxito e saia absolvido ao final, já foi condenado pelo tribunal da opinião pública. Lembro-me de quando defendi o publicitário Duda Mendonça, no tristemente famoso processo do Mensalão, após sua absolvição pelo plenário da Corte, ele me disse: “Hoje é o dia mais feliz da minha vida. Fui inocentado. Mas, pode ter certeza, de que no imaginário popular eu sou um mensaleiro. Sem direito a recurso”. E Duda era um mágico em imaginário popular.
Já assistimos, entre perplexos e extasiados, a ministro chamando o outro para acertar as contas lá fora, convocando para um duelo, desqualificando o colega com adjetivos só usados em bares, tratando advogados da tribuna como se fossem um estorvo para o processo - e não, como diz a Carta Magna, indispensáveis à administração da Justiça. E tudo isso no plenário sendo transmitido diretamente para todo o Brasil. Enfim, é o fenômeno da espetacularização do processo penal. E, nesses momentos, às favas com a Constituição.
O recente entendimento do Supremo Tribunal, que determina a prisão do réu logo após a condenação pelo Tribunal do Júri, ofende a própria Corte Suprema. Há muito pouco tempo, em 2019, em julgamento que paralisou o país, o mesmo plenário decidiu pela presunção de inocência e fixou que o réu só pode ser recolhido ao cárcere após o trânsito em julgado da sentença condenatória. Este novo posicionamento foi uma opção pela presunção de culpabilidade em confronto direto com o que havia sido anteriormente decidido pelo mesmo Supremo. E, o pior, os argumentos passaram ao largo da Constituição da República. Dá uma amarga impressão de que foi quase uma vingança do próprio Tribunal contra ele mesmo e contra a histórica decisão que garantiu o preceito constitucional quando do julgamento das ações diretas de constitucionalidade (43, 44 e 54): todo cidadão tem o direito de ser presumido inocente.
Há casos em que o cidadão foi condenado pelo Tribunal do Júri e apelou em liberdade. Passaram-se 5 anos, ou até mais tempo, do julgamento e ainda pendem, nos tribunais superiores, recursos que podem levar à anulação da condenação. Durante esses longos anos após o julgamento pelo Júri, a pessoa levou sua vida sem qualquer intercorrência. Sem nada que pudesse dar ensejo a uma reprimenda penal. Conseguiu se inserir na sociedade e espera, respeitosamente, pela decisão final dos seus recursos. Porém, agora, corre o risco de ser levada ao cárcere sem ter uma sentença final condenatória transitada em julgado. Se, após a prisão, ela for absolvida em outro julgamento, quem irá devolver-lhe a liberdade que perdeu? É óbvio que existem as hipóteses de prisão até mesmo antes do julgamento, mas não é disso que se trata. Para essas hipóteses, o recolhimento ao cárcere continua valendo e não está em discussão.
Esse é um assunto que não pode ficar fora dos debates nos tribunais, nas Universidades e na sociedade. Quem irá devolver a liberdade da pessoa injustamente presa? E não vale a insultuosa resposta afirmando que ninguém devolve a vida da vítima. Ninguém prega e defende a impunidade. O que se pretende é a aplicação do princípio constitucional da presunção de inocência. Após o último recurso, que se cumpra o veredito soberano do Tribunal do Júri.
O Poder Judiciário tem o dever de julgar em tempo razoável os processos que envolvem a liberdade. E tem a obrigação de respeitar a Constituição. Como cláusula pétrea, o princípio da presunção de inocência não pode ser relativizado, nem mesmo pelo Supremo Tribunal. É bom lembrar que ele está inserido no capítulo dos direitos e garantias individuais. Como afirmei da Tribuna da Corte, no julgamento da ADC 43: “O Supremo Tribunal pode muito, mas não pode tudo, porque nenhum poder pode tudo”.
* Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay
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