Tatiana TiburcioFoto: Globo/ Manoella Mello
Publicado 29/11/2024 09:53 | Atualizado 29/11/2024 13:51
Tatiana Tiburcio, atriz e idealizadora do projeto “Negro Olhar”, tem sido uma das vozes mais relevantes na luta por representatividade negra no audiovisual brasileiro. Com uma carreira marcada por papeis intensos e de grande significado, como Chica em "Sol Nascente", Mirtes de Souza no especial "Falas Negras", e recentemente Jussara, mãe de Aline em "Terra e Paixão", a artista compartilha uma visão profunda sobre os desafios e avanços da representatividade negra na televisão. Em conversa exclusiva com a coluna Daniel Nascimento, ela refletiu sobre o papel da cultura como espelho para a sociedade e a urgência de construir espaços onde negros possam se sentir plenamente representados.

Como você enxerga o impacto do projeto "Negro Olhar" na representatividade cultural?

"O projeto 'Negro Olhar', de leituras dramatizadas, ele tinha como objetivo mostrar ao público em geral o que já havia sido feito, o que estava sendo feito e o que ainda poderia ser feito dentro das artes cênicas brasileiras pelos artistas negros. Então a gente colocava no palco textos de dramaturgia negra que muitos não conheciam… Obras acontecendo pelo mundo com artistas como Aldri Anunciação, com o seu 'Namíbia, Não!', que acabou se transformando no filme 'Medida Provisória'".

"Esse texto 'Namíbia, Não!' teve a sua primeira leitura pública dentro do projeto 'Negro Olhar' e depois virou esse filme com a direção do Lázaro Ramos e que eu tive a honra de fazer a preparação de elenco… Então acho que o impacto é esse de gerar espelhamento para que novas sementes sejam plantadas e a gente possa colher novos e bons frutos. Foram o que aqueles que vieram antes de mim fizeram e é obrigação minha e da geração atual continuar fazendo".

Você já interpretou personagens que exploram questões raciais, como em "Falas Negras", quais reflexões esses papeis trazem ao público?

"É um serviço social. É uma tentativa de trazer a sociedade em geral para refletir sobre aquilo que ela tem feito de positivo e negativo. A arte como instrumento de reflexão com objetivo de transformação. Isso é o dever do artista e eu acredito que essa é a função principal da arte, é trazer através do entretenimento um olhar sobre o mundo, seja um olhar lírico, seja um olhar poético, que seja um olhar social".

Estar na próxima novela das 18h da Globo amplia sua visibilidade. Como você se sente ao representar mulheres negras em papeis cada vez mais complexos?

"A Viola Davis, num prêmio que ganhou há alguns anos atrás, disse que o que falta para o artista negro é oportunidade e eu faço das palavras dela as minhas. O que falta para nós, artistas negras em um modo geral, é oportunidade. Então, quanto mais oportunidade a gente tiver de realizar projetos, papeis complexos, com seus plot twists, com suas viradas, com suas humanidades… Melhor para todo mundo, porque todo mundo se engrandece com isso. A sociedade como um todo enriquece com isso".

"E porque a gente tira esse imaginário sobre esse corpo do lugar do estereótipo... do lugar do arquétipo... e coloca ele no lugar do humano. E isso é o que a gente busca o tempo todo. Quando a Leda Maria Martins escreve o livro A Cena em Sombras... quando Joel Zito Araújo apresenta o documentário A Negação do Brasil... a gente está falando disso, da necessidade de ser representado... e de representar papéis dentro de histórias... que nos coloquem como sujeitos pretos no lugar de seres humanos... e não no lugar de ratificar o imaginário estereotipado sobre nós... construído a nossa revelia.

Em "M8 - Quando a Morte Socorre a Vida", você atuou em uma narrativa que questiona a invisibilidade social. O que aprendeu com esse trabalho sobre racismo estrutural?

"É bem curioso quando você me pergunta o que eu aprendi com determinado trabalho sobre racismo estrutural. Porque não é determinado trabalho que nos ensina sobre isso. Eu sou uma mulher negra e como tal eu lido com racismo estrutural 24 horas por dia sob a minha pele, porque eu não a tiro pra viver. Então eu sofro as consequências dessa estrutura, compreendendo literalmente tudo que está acontecendo ou não".

"Não é uma situação apenas, um trabalho apenas, um projeto apenas, que nos diz, nos ensina, nos apresenta. Isso talvez aconteça com as pessoas brancas, ou as pessoas não negras, que não vivem isso na pele cotidianamente. Então, em uma determinada situação, evento, produto, vai apresentar a ela um outro ponto de vista. Mas para nós, só acrescenta em algo que a gente já sabe, porque a gente vive constantemente".

Como você vê a evolução da representatividade negra na televisão brasileira desde o início de sua carreira até hoje?

"Eu vejo que a gente vai dando passos maiores e melhores na direção daquilo que é o objetivo de todo mundo, ou deveria ser, que é vivermos numa sociedade mais justa e igualitária. A gente teve avanços inquestionáveis nessa direção… Desde as primeiras telenovelas até a década de 90, você vê o tanto que a gente caminhou, mas, principalmente você vê o tanto que a gente ainda precisa caminhar".

"É muito importante que a gente não se iluda com os passos que a gente já conseguiu dar. Ganhar uma batalha não significa vencer a guerra. Quando a gente fala de racismo estrutural, não é fácil chegar no cerne da questão da estrutura… Eu vibro pelas batalhas vencidas, me regozijo por estar vivendo um momento mais possível para nós, artistas negros… Mas eu sei que ainda precisamos caminhar bastante, então ainda precisamos estar atentos e fortes sempre, felizes sim, mas atentos também".

Em sua trajetória, quais foram os maiores desafios que você enfrentou por ser uma mulher negra no mercado audiovisual?

"Os desafios são inúmeros e vão desde uma diferenciação em questões pequenas quando que a gente sabe que se é um ator não negro, essas questões, elas já estão na mesa. Não, tem que ter uma posição X para fulano, mas quando a gente está na mesma posição que esse fulano, essa situação, 'ah, tudo bem, vai entender', a gente sempre entende".

"Então, desde esse lugar até a falta de oportunidade de trabalho mesmo, quando não se imagina que o nosso corpo, a nossa pele, a nossa tez, pode sim ser a dar vida a determinado personagem … São esses os lugares complexos, difíceis, de um olhar que nos difere do outro em qualidade, benefícios e tudo mais, apenas pela cor da pele".

No Mês da Consciência Negra, que mensagem você gostaria de passar para jovens artistas negros que sonham em trabalhar com arte e mídia?

"Eu me preocupo muito com os que estão vindo agora, porque estão pisando um terreno mais macio. Isso pode causar uma falsa impressão de igualdade e fazer com que esses jovens deixem de prestar atenção em algumas coisas que podem provocar um retrocesso em passos que nos foram muito caros dar. Essa falsa ilusão de igualdade, eu diria para eles se atentarem a isso".

"Ser negro não é uma punição. Não é uma coisa dura, difícil, muito pelo contrário, somos reis, somos rainhas, temos história, temos legado, temos grandeza, somos o princípio da humanidade. Isso não é pouca coisa e isso assusta muita gente que vai tentar nos calar, nos diminuir, nos fazer acreditar em coisas diferentes… Quem esquece a própria história é uma pessoa facilmente manipulada. Então eu diria para esses jovens, aproveitem os frutos que estão colhendo, mas não esqueçam como foi difícil plantar, estejam atentos porque vocês serão os próximos a semear".

Como você equilibra papeis mais tradicionais com personagens que abordam diretamente o racismo?

"Eu equilibro com alegria porque gosto de contar histórias e eu adoraria que fosse mais diverso, ainda tem uma certa proximidade nos personagens que me são ofertados. Eu gostaria de fazer uma mulher linda, desejada… Fazer mais personagens assim, uma mulher chique, luxuosa, elegante, rica pra caramba e com naturalidade. Porque a gente não está acostumado a ver os nossos corpos nesse lugar, então eu equilibro essas possibilidades com muita alegria e desejosa de que elas sejam ainda mais plurais".

Pensando no mercado audiovisual, o que ainda falta para alcançarmos uma verdadeira diversidade de narrativas negras?

"Não existe uma receita de bolo, algo que a gente vai chegar, vai fazer dessa e dessa maneira e vai com certeza vai dar certo. O racismo no Brasil é algo muito bem estruturado e perverso, tá nas nuances se misturando com questões de alteridade, com pontos de vista e questionamentos que nada tem a ver de fato com a questão, só serve para anular o debate. Então é uma das estruturas racistas mais complexas que já existiram".

"A resposta para isso não seria fácil, porque o audiovisual é o espelho de uma sociedade, de uma forma literal ou de uma forma fantástica, fabular, não importa, é o espelho da humanidade. Então é muito complexo, mas eu acho que a gente está trilhando caminhos bem concretos de transformação diante de cada desafio".

Qual conselho você daria para diretores e roteiristas ao desenvolverem histórias que envolvem a identidade negra?

"É preciso ler, é preciso ouvir o que já foi dito, é preciso se munir de informação. Não é bater no ombro do artista e esperar que ele diga para você o que você tem que fazer enquanto diretor ou roteirista. Mas é correr atrás e aprender… Vai ver as nossas obras, o que nós, artistas pretos, diretores, roteiristas escrevemos e dirigimos, os nossos olhares, vai estudar, como se estuda tantos outros não negros, isso já vai facilitar muito a vida, não ficar esperando de mão beijada que a gente diga onde está o problema.

"O desejo de fazer diferente já é um passo gigantesco na transformação desse mal que permeia as nossas entranhas, mas só o desejo de fazer diferente não basta, é preciso se instruir, de fato, é preciso estar na disposição de cortar na carne, é preciso ter coragem de abrir mão de privilégios. Isso é o mais complexo... abrir mão de privilégios".
Leia mais