Digão RibeiroAdoro Cinema / Divulgação - Styling e prod de moda: Fernanda Melo - Assistência: Luiza Leal
Publicado 13/11/2024 07:00
Com apenas 29 anos, Digão Ribeiro já acumula uma trajetória de destaque no cinema e na TV. Conhecido por papeis em produções como "Dom", "Encantados" e "Os Últimos Dias de Gilda", o ator carioca comentou suas vivências e desafios na indústria em entrevista exclusiva com a coluna Daniel Nascimento. O artista abordou temas como a importância da representatividade negra, os sonhos que ainda deseja realizar e o impacto de personagens fortes e complexos em sua carreira e na luta por espaço para atores negros no audiovisual brasileiro.

Digão, ao longo dos seus quase 30 anos, como você percebe a evolução da representatividade negra no mercado audiovisual brasileiro?

"Agora eu acho que já se tornou natural ver um número de pretos consideráveis em obras, em lugares até bacanas, e, mais do que isso, tem se tornado natural a preocupação. Acho que não se tornou natural a escolha, ter uma ideia e automaticamente você pensar nessa ideia incluindo pessoas pretas como opção, mas sinto que na hora de pôr em prática a gente consegue lembrar. Tem um ponto de exclamação bem grande na questão da representatividade negra nas obras, porque o Brasil é formado maioritariamente por pessoas negras, então a gente precisa se ver em tela e isso já foi entendido".

"A gente está avançando para que esse espaço se torne mais natural, aconteça de forma orgânica, espelhando cada vez mais o que a gente vê na vida real. Porque agora a gente sabe que as pessoas pretas elas estão nas obras... E é um processo que está surtindo efeito. Vem muito da ocupação de espaços por pessoas pretas em todas as camadas: no roteiro, na direção, no criativo, no executivo e na produção de elenco, em todas as camadas que façam o audiovisual se movimentar".

Em “Encantados”, você interpreta um papel significativo. Como foi para você, como ator negro, construir essa personagem e trazer sua história para a televisão?

"Foi muito especial porque foi uma permissão, um aval para colocar um homem sensível, sabe? Um homem negro retinto, grande, e sensível em tela, construir ele assim. E era muito louco porque ele era muito semelhante a mim em porte físico, em realidade. Porque eu sou da Cidade de Deus, eu tenho uma relação com o carnaval, com o bloco "Vem Delícia", a minha mãe também era de escola de samba".

"Quando eu tenho a possibilidade de sair, né, dos personagens que eu fazia e venho fazer um galã, com toda a complexibilidade de uma pessoa, de um homem negro retinto, periférico do samba... O trabalho de um homem preto junto com uma comunidade que se faz em 'Encantados', que era majoritariamente negro, toda essa comunidade jogando com a sociedade, tipo 'o que a gente vai discutir aqui, o que nós vamos conseguir abrir como possibilidade para o futuro'".

"É [a sensação] de busca por referência dentro de casa, mas que nunca foram postos nesse lugar, então fazer o flashback foi jogar Champions League!".

Qual foi o momento mais marcante em sua trajetória como ator no que diz respeito ao fortalecimento da consciência negra?

"Eu acho que o dia mais marcante da minha história enquanto ator até aqui foi o dia em que eu cheguei na Disney. Foi o dia em que eu passei para fazer o musical da Disney. É isso, às vezes a nossa obra enquanto ator, vou até me emocionar, ela toma a frente da gente e nos vende de uma forma caricata mesmo. A imagem aparente e os preconceitos que o visual reforça e eu sinto que de alguma forma os meus primeiros trabalhos me limitavam no lugar de existência, eles chegavam em lugares em que eu não chegava. E isso acabava fazendo com que eles sentissem a necessidade de não performar, mas de dialogar sobre aquelas coisas que eu colocava em tela e muitas vezes não concordava".

"E quando eu chego numa série da Disney que é um musical e que é preto, sobre funk e periferia e eu me vejo ali somando, pertencente, consciente, vendo o ambiente, o entorno com pessoas que vivem e reproduzem a realidade ali para a tela... Pra mim, eu cheguei lá… Meu trabalho hoje, ele conseguiu condizer com o que eu acredito, com o que eu vivo, com o que eu respiro, a ponto de eu me sentir em sintonia com a vida. Então, acho que o dia mais especial pra mim, na minha carreira até aqui, foi o dia em que eu fiz o meu primeiro trabalho na Disney".

Como você acredita que a novela “Encantados” contribui para promover questões de identidade e cultura afro-brasileira?

"É com a possibilidade de identificação daqueles personagens que são diversos, mas totalmente extintos um do outro. Você consegue encontrar cada um deles na sua vida, ver as situações com as quais eles se desenvolvem, junto com o fundo de mercado, de comércio suburbano e com carnaval e você tirar a graça dali por identificação. Só da gente ser majoritariamente negros na frente da tela e trazer a ideia do subúrbio carioca, o carnaval da Intendente Magalhães … isso gera uma identificação com o povo brasileiro que é automática. Eu acho que isso traz um movimento de reconhecimento e de valorização".

"E poder gerar esse movimento para nosso povo é muito importante, esse momento de resgate mesmo de cultura, de espaço do nosso reinado. É reconhecer o que a gente tem de valor, o que vem dos nossos ancestrais nesse lugar de potência, de ancestralidade, religiosidade, traz esse lugar de comunhão familiar… Colocar isso em tela é de fato a gente abre discussão para a nossa realidade".

Há algo que você gostaria de ver mudado na forma como o mercado audiovisual retrata personagens negros?

"Sim, eu queria realmente que a gente conseguisse passar um pouco desse lugar de colocar as pessoas pretas discutindo apenas as suas questões, nas suas vidas, em seus conflitos, que pode vir a ser de uma realidade majoritariamente preta. … Mas que a nossa vida seja de fato uma vida retratada para mostrar a beleza dela, mostrar poesia, tirar a arte daquilo ali e isso automaticamente gerar um movimento na sociedade de entendimento".

"Eu sinto que a gente precisa cada vez mais encontrar nas obras uma forma de colocar as questões raciais,refletir sobre as questões sociais de uma forma mais orgânica, para que a absorção do nosso público também seja orgânica… Queria que mudasse a forma como os pretos são retratados nas suas questões, que passem pelas suas peles. Queria que a gente fosse para além, mostrasse os pretos vivendo, tendo conflitos humanos e desses conflitos humanos às vezes, sabe, com brancos, indígenas, a gente encontrar soluções possíveis".

Ao se aproximar dos 30 anos, que legado e impacto você deseja deixar para futuros atores e atrizes negros no Brasil?

"Minha trajetória foi cheia de altos e baixos, mas eu acho que sempre com olhares positivos que me deram, em cada momento de dificuldade, um estalo de como continuar… Acho que um dos maiores legados foi como eu consegui também quebrar e mostrar para os nossos colegas de trabalho o quanto a gente poderia fazer também nesse mercado virtual das redes sociais. Encontrar nossa forma ali de vender o nosso peixe, independente de não estar saindo nas redes sociais das pessoas famosas… Então isso foi gerando um movimento que ficou assim e que é muito comum hoje. Eu fiquei feliz quando vi o meu padrinho Lázaro Ramos divulgando o Mário Fofoca através de um reels. Eu falei assim, 'caraca, o futuro chegou na Globo, olha aí'. Eu achei isso muito divertido e é uma das coisas que fica pra posteridade, pra galera poder entender como movimentar sua carreira".

Que desafios você enfrentou em sua carreira devido ao preconceito racial e como superou esses obstáculos?

"No momento em que eu vivo um processo com 'Alemão 2' e a gente faz uma manifestação no tapete vermelho do Festival do Rio, na premiére do filme, encabeçado por mim junto com todo o restante do elenco, Aline Borges, Mariana Gomes… E isso acabou deixando claro que eu de fato sou um artista pensante e que o meu trabalho, ele vai para além da prestação de serviço de construir um personagem e botar em tela… Sou um preto, negro, gay, retinto, periférico, gordo, então tudo isso acaba atravessando a minha visão de mundo. E eu tive que, de certa forma, me reafirmar nesses lugares…

"A gente conseguiu, de alguma forma, fazer debates, trazer luz a algumas coisas que estavam ali meio que escondidas… A gente acabou de fincar a nossa presença aqui. Então agora a gente sabe que vai estar aqui em todas as obras, mas como estar sem ser uma glamourização da periferia ou da sua cor de pele? O desafio enquanto ator é também de construir esses personagens nesse lugar mais consciente, trazendo uma construção humana e promover essa discussão para que o mercado também traga mais oportunidades para uma gama maior de pessoas pretas e o processo avançar mais".

Qual é a importância da representatividade negra nas novelas e em outros espaços de mídia para a construção de uma sociedade mais inclusiva?

"Eu acho que é exatamente esse lugar das pessoas conseguirem se ver representadas e discutir questões de vivência. Agora não mais de forma caricata apenas, mas de forma humana, com as suas vivências, seus conflitos, as resoluções, a sua espiritualidade, sexualidade, intelecto, o seu trabalho, cotidiano… Ver isso em tela acaba ajudando as pessoas a conseguirem ter um momento do que a arte faz de reflexão, de pensar sobre as suas questões, seus atravessamentos e ajudar a desdobrar de forma mais consciente".

Como ator e cidadão negro, de que maneira você busca inspirar a juventude negra que sonha em atuar no mercado audiovisual?

"Eu sou formado pela Escola de Teatro Martins Pena, uma escola de teatro que a gente precisou ocupar essa escola, fazer todo o movimento para deixar ela viva. E, na verdade … Eu acho que a maior forma de inspiração que eu tenho para deixar para as pessoas é ocupar os espaços, sabe? Porque eu sinto que ainda existe esse lugar de novidade de ver esse corpo, sabe? Esse tipo de pessoa podendo se portar, lidar de igual para igual em todos os lugares que chega. Deixar claro que tem muitas outras pessoas como eu que estão ali, só esperamos oportunidades certas, se formando, se qualificando para poder ocupar esses espaços também".

"A gente consegue ir até o infinito, mas de ponto em ponto e eu acho que cada espaço que eu ocupo pode ser uma referência para essas pessoas. E aí deixando como legado também esse movimento de continuar ocupando, avançando. Como tem gerações que vieram antes de mim e ocuparam e deixaram o caminho pavimentado para que na minha vez fossem essas questões que eu estou lidando agora. Então acho que avançar, ocupando esse espaço e tentando resolver o máximo possível de questões na minha vivência pessoal, que acabam influenciando na forma como o mercado trata e cuida desses artistas. Talvez nem sempre as pessoas vão saber que alguns conflitos se deram ou se transformaram por conta daquele artista. Mas quando você vê a pessoa ocupando aquele lugar e você se espelha naquela pessoa, você fala 'nossa, talvez eu consiga chegar até aquele ponto'".

Se pudesse enviar uma mensagem para os produtores e diretores sobre o papel deles na inclusão de negros na dramaturgia, o que diria?

"Continuem, porque o movimento está certo, está surtindo efeito. Eu acho que vocês estão, de fato, conseguindo trazer essa representatividade para a tela, no convívio desses personagens que vão para as obras. Subindo um pouquinho, eu acho que vocês poderiam expandir para conflitos mais humanos e cotidianos, tentar passar esse desafio apenas pela cor da pele, mas por questões sociais de convívio nas tramas, acho que pode ser um lugar interessante e desdobrar em reflexões para a sociedade avançar".

"O mais importante é o contrato com colaboradores pretos também, que sua equipe de direção também tenha diretores pretos para que a gente consiga realmente criar um equilíbrio. Porque eu acho que quando esses autores, produtores, qualquer líder de equipe do audiovisual que possa escolher e montar suas equipes pensem em colaboradores pretos, esse entorno influencia para que a gente encontre um equilíbrio social".
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