Bukassa Kabengele fala sobre desafios e avanços na representação negra em entrevista exclusiva ao jornalista Daniel Nascimento para a série de entrevistas ’De Preto para Preto 20’Foto: Márcio Farias/ Divulgação - Beleza Jefferson: Azevedo - Stylist: Francisco Martins -
Publicado 26/11/2024 10:01 | Atualizado 26/11/2024 11:25
Bukassa Kabengele, ator de destaque em séries e novelas como “Vai na Fé” e “Amor Perfeito”, participou de uma entrevista exclusiva com a coluna Daniel Nascimento para a série "De Preto para Preto 20", e falou sobre as transformações e desafios da representatividade negra na TV brasileira. Ainda no mês da Consciência Negra, o artista comentou sobre papeis e projetos que trazem visibilidade para questões raciais, além de dividir suas reflexões sobre o impacto da ancestralidade em seu trabalho.

Bukassa, durante o mês da Consciência Negra, como você vê a evolução da representatividade negra na televisão e no cinema no Brasil? Acredita que o cenário está realmente mudando?

"De cinco anos para cá o quadro mudou bastante, pelo menos a TV de maior audiência (TV Globo) passou a adotar um número maior de atores negros e atrizes negras em suas obras de ficção, novelas, séries entre outros. Onde se destacam as mulheres negras, a ponto desse ano temos pela primeira vez na história da TV brasileira três horários de novelas por elas protagonizadas. Gabz no horário das 21 horas, Jéssica Ellen no horário das 19 horas e Duda Santos as 18 horas. Fabrício Boliveira também protagoniza no horário das 19 horas".
"Sinto ainda uma resistência de colocar homens negros nesses lugares. A sociedade tem a imagem racista e associadas a crimes e violências. São mais atacados pela polícia, morrem muitos jovens pretos homens, e por aí vai. Temos André Câmera na direção artística do horário das 19 horas e Jeferson De na direção geral no horário das 18 horas ambos homens negros. Cresceu o número da porcentagem de atores negros na faixa das 18 horas e das 19 horas chegando às vezes a quase 50%. Mas isso é algo recente demais e ainda não teve um grande efeito no comportamento social e diminuição do racismo na sociedade. Precisamos manter esse quadro e normalizar essa realidade por alguns bons anos, sem retrocesso para que as pessoas comecem a pensar e se comportar de formas não racistas. É muito positivo e primordial esse quadro de representatividade. Mas ainda falta bastante, eu diria que estamos no começo de um processo de mudança. O cinema tem que caminhar bastante ainda no recorte da negritude, foram feitos avanços".

"Mas precisamos de mais espaços, incentivos e empoderamento em diversos setores como direção, produção executiva, fotografia e roteiro. Setores onde não nos vemos numericamente representados nem na própria televisão. E ainda profissionais negros ganham de forma geral menos que os brancos nesses segmentos. Estamos no caminho de mudanças graças a luta de muitos dos nossos antecessores, nossas umas e assim por diante. Saímos daquela situação de ter dois ou três negros, representando muitos fora do mercado. Nesse sentido melhorou. Mas ainda há muito trabalho a ser feito".

Em sua trajetória, você sempre procurou fortalecer suas raízes africanas. Como essa conexão com a ancestralidade influencia o seu trabalho e a escolha dos papéis que deseja representar?

"A aceitação da minha história, origem, negritude, minha africanidade, meu corpo, meu comportamento, minha cultura independente da adoção também da cultura brasileira, é o que me fazem quem eu sou. Para além dos meus anseios e sonhos como qualquer ser humano busca ao construir uma carreira, eu tenho consciência política em relação aos lugares que ocupo. Tenho responsabilidade perante pessoas negras e brancas em relação as minhas lutas por uma sociedade mais justa. Não sou apenas um homem negro que conquistou respeito dentro do mercado difícil na minha área de atuação em uma sociedade racista, mas um homem de origem africana, e a partir da minha arte tento dialogar com a sociedade e o meu povo para que possamos entender que somos capazes de ocupar qualquer lugar do nosso desejo. Não aceitamos ser colocados em lugares de dor que as estruturas racistas determinam".
"Essa é a minha luta e por isso a importância de me assumir por inteiro, para mostrar aos outros que não precisam ferir suas integridades físicas, culturais, intelectuais entre outras, se apagando para servir aos desejos de alguém. Precisamos ser livres, ser respeitados como pessoas e com direitos resguardados. A vida digna não é algo fácil para não brancos em sociedades racistas. Eu tenho a honra de um casal de admiradores meus, ter dado nome de Bukassa para seu filho recém nascido aqui no Brasil. Isso diz muito de minhas escolhas e lutas".

No mercado audiovisual, os atores negros ainda enfrentam barreiras significativas. Quais são, na sua opinião, os principais desafios que precisam ser superados para que mais atores negros possam ter oportunidades iguais?

"No audiovisual, o fato do mercado ter aberto as portas na televisão ou nos streaming onde fiz muita coisa, percebo que houve um aumento significativo na quantidade de atores negros o que não quer dizer que as condutas deixaram de ser racistas. Ainda vivemos uma sociedade fundada num racismo estrutural. Então, o que eu quero dizer com isso? Vamos fazer uma analogia. Um homem não necessariamente deixa de ser machista porque se casa com uma mulher, aliás vivemos uma sociedade de moldes paternalistas e machistas onde os problemas e as violências causadas pelo machismo continuam firmes. Voltando a nossa questão, percebo que os negros homens e mulheres estão preparados para o mercado mas não necessariamente o mercado pela ótica da branquitude os abraça adequadamente. O racismo velado continua operando de forma silenciosa ou não e fazendo vítimas. Percebo que os autores ainda não sabem escrever histórias no recorte da negritude. Não temos diretores e autores negros ocupando essas cadeiras. Diariamente ainda lidamos com os fantasmas e feridas herdados da "Casa Grande Senzala" Levamos para a ficção o racismo por escolha das estruturas pensantes presentes nas obras por conta de diretores, produtores, fotógrafos, figurinistas, pesquisadores entre tantos, que não tem olhares ante racistas ao elaborarem projetos.
"O racismo é complexo e profundo. Não posso ser hipócrita e dizer que está tudo bem, que ele sumiu, porque nós estamos trabalhando ou começando a ser vistos. Mas ainda percebo que as formas e tratamentos são diferenciados. Como pode tratar da mesma maneira um profissional que se iguala seus parceiros em excelência em profissionalismo, se for no caso em tamanho de papel e pagar menos a ele que seu colega branco ou branca? Isso por si, na minha opinião diz muito. Se não te pagam a mesma coisa que seu colega, não te enxergam como ele, em termos de valor!"

Como homem negro que conquistou espaço na TV e no cinema, qual papel você busca exercer para abrir caminhos e fortalecer a presença de artistas negros no mercado audiovisual?

"A minha luta é sempre no sentido de fazer o meu melhor, dar o meu máximo, me fazer respeitar dentro e fora do trabalho. Conseguir ecoar a minha voz e argumentos naquilo que eu acho relevante em relação às condutas com meus personagens e projetos que escolho fazer. Me emprenhar ao máximo nas oportunidades para cada vez mais com a minha experiência e vivência na prática do meu ofício, para alcançar o meu nível máximo que eu puder se assim os papeis me permitirem. Essa é a forma de dar exemplo e mostrar que nós somos capazes e merecermos espaços que nos dignifiquem".

Você afirmou que os negros “podem ser o que quiserem”. Como essa visão inspira você em sua carreira, e como procura transmitir essa mensagem para jovens negros que querem seguir o mesmo caminho?

"Acreditando neles, entendo que a coisa mais valiosa que temos é nossa vida. A moeda mais valiosa é nosso tempo de vida. Quando você realiza o sonho do outro você deixa o seu de lado. E se o sonho do outro é que você desapareça e ou morra, o que acontece? Você vai morrer ou se tornar invisível. É isso que racismo faz. Então, eu diria aos jovens; por mais difícil que seja trabalhem muito para serem o que desejam e sonham. Usem o tempo de vida para investirem em vocês, seus valores e culturas. Porque nesse mundo e formato, o branco já tem todos os privilégios. Não deem para ele a única coisa que lhes resta, a sua dignidade".

Há uma diversidade rica nas histórias que podem ser contadas por atores negros, mas muitas vezes o mercado ainda limita essas narrativas. Que tipos de histórias você acredita que ainda precisam ser contadas, especialmente no cinema e na televisão?

"Poxa vida... Todas! Estamos apenas na ponta do iceberg".

Sabemos que a representação negra vai além da tela, sendo importante também na direção, produção e roteirização. Que ações acredita serem necessárias para que o mercado audiovisual seja mais inclusivo em todas essas áreas?

"Exatamente. De alguma forma respondi isso em outras questões anteriores aqui citadas. Eu costumo dizer o seguinte. Protagonismo não é apenas dar um papel principal para um ator ou atriz da negritude. Para que o conjunto da obra esteja completo, precisamos das outras partes que compõem uma boa narrativa para que a magia aconteça e tenhamos identidade com o público para além do talento dos artistas. Precisamos de diretores, autores, fotógrafos, produtores executivos, maquiadores, diretores de arte, entre outros, que sejam negros, ou em números equilibrados nas equipes para chegarmos a esses olhares que que contemplam por inteiro nas nossas realidades e histórias. Precisamos escapar dos estereótipos aos quais a branquitude nos coloca. Isso independe do gênero a ser tratado como ficção. Protagonismo é dar qualidade ao tempo de tela de nossos atores e atrizes negros ao interpretarem seus personagens. Temos aí campo vastos a serem explorados. É a maneira como usamos a máquina para contar as histórias que envolvem a negritude e suas questões de forma sensível e humana".

Na sua carreira, você já interpretou personagens intensos e complexos. Qual papel teve mais impacto na sua visão sobre a representatividade negra, e como ele contribuiu para sua construção como artista?

"É muito difícil para mim apontar um personagem ou outro, fiz muitos e todos relevantes, fortes e importantes dentro da trama independente, do tamanho. Também é difícil dizer qual ou quais tiveram impactos na construção da minha carreira porque todos tiveram, e de certa forma, independente do amadurecimento, a carreira artística é sempre um processo em construção. Se ela parar eu acho que não faria mais sentido para mim seguir em frente. A busca, a curiosidade, a fragilidade e complexidade humana são meus eternos materiais de investigação. Mas eu posso citar um personagem no sentido de simbolizar espiritualmente, ancestralmente e no discurso. Um personagem que carregava, minhas lutas, meus pais, meu povo negro em qualquer lugar. Um ícone da liderança Mundial e uma das grandes referências nas lutas anti-racistas. Com esse olhar posso dizer que o meu grande personagem foi fazer Nelson Mandela em "Falas Negras", texto de Manuela Dias e brilhante direção de Lázaro Ramos, projeto realizado pela TV Globo. Esse personagem sintetiza todos os outros de alguma maneira, pelo menos é desse lugar dentro de mim que eles nascem, do entendimento de uma grandeza interna embora simples, frágil e humana".

Em que medida você acredita que o público brasileiro está preparado para ver uma maior diversidade racial nas produções? Quais barreiras culturais ainda precisam ser superadas?

"Isso é algo que tem que ser feito. As audiências comprovam que o público embarca quando as histórias são bem contadas com coerência e pontos de identificação humana, até porque 56% por cento da população brasileira é negro ( pardos e pretos). Esse povo existe, consome e se reconhece quando representado nas telas de forma digna do mesmo jeito que os brancos se sentem. Isso não tem nada a ver com fazer " Mocinhos e mocinhas ou vilões e vilãs". Público gosta de boas histórias, bem contadas, com personagens que criam identidades e afinidades, mesmo discordando deles. E para isso precisam ser humanizados, ter história, visibilidade e tempo de tela. O exercício tem que ser feito, o público vai embarcar se as histórias conversarem também com ele. E os negros nesse quesito são a maioria do povo Brasileiro. Precisam começa a ser considerados potências enquanto telespectadores".

Qual mensagem você gostaria de passar para o mercado audiovisual brasileiro sobre a importância de um elenco e de histórias que reflitam melhor a diversidade do país, especialmente no que se refere à inclusão de homens negros?

"As evidências estão aí e mostram nas audiências. "Cidade de Deus" como filme foi fenômeno mundial no cinema. Não deixa de ser uma história de recorte da negritude. Mesmo tendo direção branca, os talentos dos atores pretos e seus protagonismos respeitados por inteiro levaram a essa humildade sem fronteiras. O mundo sentiu isso. Podemos contar diversas formas de histórias no recorte da negritude em todos os gêneros. Novelas como : Vai Na Fé, e Amor Perfeito" que fiz parte, todas com protagonismo e grande elenco negro, tiveram recordes de audiência em seus horários na TV Globo. Isso foi possível porque em cada área criativa sempre teve algum negro para ajudar nas escolhas e caminhos das narrativas para além do talento dos atores e atrizes. A mistura saudável é o retrato do Brasil. Isso é a nossa saída e futuro. Será difícil o público se acostumar a ficar sem essa cara nova que mostra na ficção um Brasil plural que está nas casas, nas ruas e no coração do povo. Um Brasil onde todos podemos nos enxergar nas telas, nas fantasias e nos sonhos. Na arte mais completa de todas que é o Audiovisual. Precisamos abraçar a coisa mais valiosa que temos no nosso país, a diversidade étnica e suas bagagens".
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