Publicado 17/11/2024 07:00
Com mais de cinco décadas de carreira, Zezé Motta, uma das pioneiras na luta contra estereótipos raciais no audiovisual brasileiro, refletiu sobre personagens marcantes como “Xica da Silva” e sobre o impacto duradouro de suas atuações. As vésperas do feriado da Consciência Negra, a atriz e cantora, que já enfrentou críticas e preconceitos, relembrou o aprendizado com a ativista Lélia Gonzalez e revelou seus próximos passos na atuação. Em uma entrevista exclusiva para o colunista Daniel Nascimento, idealizador do projeto "De Preto para Preto 20", a famosa destacou suas conquistas e os sonhos que continuam a nortear sua jornada em prol da representatividade negra na cultura e na mídia.
Zezé, você foi pioneira em protagonizar papéis que romperam com estereótipos, como Xica da Silva. Como foi desafiar as expectativas sobre mulheres negras no cinema e na TV brasileiras naquela época?
“Com o sucesso de “Xica da Silva”, comecei a ser solicitada para muitas entrevistas, me perguntavam como era ter protagonizado um filme sendo uma mulher negra, qual era a importância de ter estourado no mundo... Eu ficava frustrada em toda entrevista que dava, pois tinha o sentimento da mulher negra, mas não tinha o discurso articulado. Um dia, lendo jornal, descobri um curso de cultura negra no Parque Lage, com Lélia Gonzalez, antropóloga, socióloga, romancista, ativista e, por acaso, negra. Na aula inaugural, ela disse: ‘Sei por que vocês estão aqui, mas quero deixar claro que não temos tempo para lamúrias. O que nós temos que fazer é arregaçar as mangas e virar esse jogo’. E nós não éramos apenas jovens, não éramos apenas negros”.
“Na época, cheguei a ser bastante criticada por algumas pessoas radiciais do movimento negro, achavam que eu estava supersexualizando o corpo de uma mulher negra, por conta principalmente do filme Xica da Silva. Eu até compreendo, mas é uma postura muito radical. Só eu sei, na época, como foi libertador me sentir desejada por todos os lugares que eu andava”.
“Virei símbolo sexual e tive problemas com isso, porque todo mundo queria transar com a Xica. Me lembro de transarem comigo e suspirarem dizendo assim: “Ah... Quando o filme se torna realidade...”. Parece mentira, mas ouvi isso de um cineasta. Em outra ocasião, quase fui estuprada por um taxista. Ele olhou pelo retrovisor e disse: “É a Xica”. Quando vi, já estava enfiando as mãos nas minhas pernas. Eu estava de minissaia. Entrei em pânico. Ele começou a furar todos os sinais. Pensei: “Tô ferrada, vou ser sequestrada”. Quase saltei do carro em movimento. Foi tudo muito rápido na minha cabeça. Minha sorte é que o sinal fechou, o motorista teve que parar porque tinha um guarda e eu saltei. Nem paguei o táxi. Brinco que ele já tinha passado a mão nas minhas pernas, então a corrida já estava paga”.
“Quando as pessoas começaram a me chamar de Xica na rua, fiquei bem incomodada. Já tinha uns oito anos de carreira no teatro, tinha feito um filme, novelas… Queria que meu nome artístico, dado pela Marília Pêra [antes, ela usava seu nome de batismo, Maria José Motta], emplacasse, mas as pessoas só me chamavam pelo nome da personagem. Mais tarde, percebi que a Xica era minha madrinha, que não tinha que reclamar da vida, não. Estava tudo certo”.
Como você acredita que o impacto de personagens icônicos que interpretou ressoa nas conquistas e na visibilidade das artistas negras que surgiram nas últimas décadas?
“Isso na verdade quem tem que responder são as pessoas, vejo muitas atrizes, muitas meninas dizendo que se inspiraram em mim. Sim, isso é uma conquista. Eu fico extremamente feliz com isso. Pensa só, eu sou do tempo em que os personagens negros não tinham família, eles viviam a reboque dos outros, geralmente brancos. E quando tinha um espaço para mim, a não ser que o assunto fosse escravidão, não tinha para a Neusa Borges. Quando tinha para a Chica Xavier, não tinha para a Ruth de Souza. Quando as pessoas perguntam se as coisas melhoraram, digo que sim, mas que ainda temos muita luta pela frente. O que me anima é perceber hoje que a maioria dos negros brasileiros têm o orgulho de ser negro, andam de cabeça erguida e não aceitam discriminação”.
Quais foram os maiores desafios e preconceitos que você enfrentou ao longo dos anos, especialmente em uma indústria onde papéis principais para mulheres negras ainda são limitados?
“No meu primeiro protagonismo na televisão brasileira em horário nobre... Ali foi uma das maiores dificuldades que enfrentei. Já tinha feito diversos papeis na TV, já era conhecida por conta do sucesso do filme Xica da Silva (1976), mas essa foi uma grande oportunidade que tive do Gilberto Braga em 1984. ‘Corpo a Corpo’”.
“Este foi um dos grandes avanços para o Movimento Negro no país, discutir uma questão racial em uma novela das oito. Foi uma novela revolucionária, o Gilberto Braga tocou em vários temas tabus, entre eles, o do relacionamento inter-racial. O casal formado pelo Marcos Paulo e por mim causou um rebuliço danado. Os telespectadores que participaram dos grupos de discussão da novela vinham com as visões mais preconceituosas. Uma nordestina dizia que mudava de canal porque não podia acreditar que um gato como o Marcos Paulo pudesse ser apaixonado por uma mulher horrorosa. Outro achava que o Marcos Paulo devia estar precisando muito de dinheiro para se humilhar a esse ponto”.
“Aí eu lembrava da Lélia Gonzales, que eu conheci num curso de cultura negra no Parque Lage, dizendo que não se pode sofrer com esses comentários e que é preciso manter a cabeça erguida. Porque ficar de vítima reclamando é muito fácil. Fácil, chato e contraproducente. Lembro também de um caso marcante que tenha me acontecido com relação a racismo. Pegando Salvador como exemplo e considerando que a Bahia é uma pequena África, lembro de dois. Estava numa festa com a Elke (Maravilha), de classe média alta, sem outros negros além de mim, começaram a perguntar por que eu estava ali, quem me levou? Um clima horrível. Noutra vez, estava na praia com Caetano (acho que era no Farol da Barra), passou um cara gritando “Pra quem será que ela deu pra fazer sucesso”? Eu estava vivendo um momento de exposição. O Caetano foi lá e enfrentou o cara, deu um passa-fora nele, que saiu com o rabo entre as pernas”…
Como o mês da Consciência Negra reforça a importância da representatividade, e o que você considera essencial para que essa data gere reflexões sobre o papel das mulheres negras na cultura?
“Novamente, fico muito feliz que nossa luta venha se fortalecendo a cada ano que passa, sabemos que falta muito ainda. Para mim, o dia 20 de novembro, é um dia muito importante para o nosso país e sociedade, um dia de reflexão contra o racismo, mas, que essa reflexão reflita todos os dias na nossa sociedade”.
“O recado que deixo é que devemos lembrar sempre que somos bonitas, capazes e não somos inferiores. É nosso dever passar esses pilares e informações para as nossas crianças e reforçar que a cultura negra entre no currículo escolar porque só assim poderemos trabalhar a autoestima dos jovens e só dessa forma eles podem se orgulhar de serem negros”.
Durante sua carreira, você sempre foi ativa na luta pelos direitos da comunidade negra e pelo combate ao racismo. Como esses valores moldaram suas escolhas profissionais e artísticas?
“Eu vejo a minha trajetória como uma missão. Eu me sinto predestinada. Tudo que eu tenho feito e tentado fazer é da melhor forma possível, com a preocupação de que seja com muita responsabilidade e com muita dignidade. Fico muito honrada, por exemplo, quando alguma mulher, principalmente uma mulher negra e jovem, fala que eu sou uma inspiração. Hoje eu vejo que o reconhecimento é uma coisa importante”.
Como foi, para você, construir uma carreira de relevância em um setor tão competitivo e que, por tanto tempo, ofereceu poucas oportunidades para atrizes negras?
“Nunca desisti, e sempre me apaguei a frase que a Lelia Gonzalez me disse (temos que arregaçar as mangas e virar o jogo), sempre lembro disso, e nunca desanimei, perseverei, até hoje penso nisso e me apego"!
Há algo que você gostaria de ver mudando na forma como o mercado audiovisual retrata personagens negros?
“Sim, queria ver famílias inteiras, negras, bem sucedidas, juízes, promotores, advogados, professores... Também queria ver mais autores negros, diretores, por aí vai... Temos muita luta pela frente ainda”.
Nos anos 70/80, quando voltou dos EUA, você fez um curso com a ativista Lélia González. O que isso influenciou e mudou na sua vida como mulher preta?
“Então, foi nessa temporada, nos Estados Unidos, que eu realmente me aceitei com as características da minha origem, de mulher negra. Na peça, o Boal tinha um esquema que ele chamava de coringa. Nós tínhamos um Zumbi, que era o Lima Duarte, mas em vários momentos da peça, cada um de nós assumia o papel do Zumbi. E então a gente foi fazer uma apresentação no Harlem, uma apresentação de cortesia. E aí, lá fui eu, fazer ‘Arena Conta Zumbi’, usando uma peruca lisa, chanel”.
“Depois da apresentação, o Boal foi chamado - porque o pessoal do Harlem não dá mole mesmo, principalmente durante essa fase do ‘Black is Beautiful’ - e falaram para ele ‘o que essa alienada está fazendo no seu elenco?’. E eu era a única negra do elenco. Aí ele respondeu que eu não era alienada, mas que se eu preferisse usar o cabelo assim, não seria ele a querer mudar isso. Mas eles acharam esquisito eu levantar o dedo e falar que era Zumbi, mas com peruca lisa. Foi então que depois do jantar o Boal veio conversar comigo e eu fiquei tão constrangida, porque eu achei que eles tinham razão: uma coisa sem nexo, sem sentido”.
“Nada contra quem gosta de alisar o seu cabelo, sou contra essa patrulha, a pessoa precisa ser feliz, mas o que eu critico em mim, no passado, é que eu tive um processo de embranquecimento para ser aceita e ter acreditado que para ser bonita eu tinha que ter o perfil do branco. Eu já pensei em fazer uma cirurgia no nariz, pensei em comprar uma lente de contato colorida, alisava o cabelo, cheguei a investigar se existia alguma cirurgia que diminuísse o bumbum…
“... E aí comecei a fazer a peça com a peruca black power. Foi uma troca de perucas! Teve até uma reportagem, de um jornal de São Paulo, que mostrava eu estava embarcando de peruca chanel e voltando para o Brasil com a peruca black power. Isso foi muito significativo mesmo. E de alguma maneira isso foi bom porque as minhas filhas já não passaram por esse processo. Elas já foram educadas ouvindo o tempo todo: nossa, como você está linda! Com as trancinhas, com o black power, com os turbantes. Já foram educadas ouvindo isso o tempo inteiro”.
Zezé, com mais de 50 anos de carreira, você é reconhecida nacional e internacionalmente como uma figura importante na construção dessa representatividade. Como é para você saber que abriu caminhos e inspirou tantos artistas negros ao longo dos anos?
“Olha eu agradeço a Deus todos os dias por isso, eu sempre digo quando me perguntam isso, que nunca desistam do sonho, sem sonho é impossível ser feliz. E temos que preservar também”.
Zezé, você foi pioneira em protagonizar papéis que romperam com estereótipos, como Xica da Silva. Como foi desafiar as expectativas sobre mulheres negras no cinema e na TV brasileiras naquela época?
“Com o sucesso de “Xica da Silva”, comecei a ser solicitada para muitas entrevistas, me perguntavam como era ter protagonizado um filme sendo uma mulher negra, qual era a importância de ter estourado no mundo... Eu ficava frustrada em toda entrevista que dava, pois tinha o sentimento da mulher negra, mas não tinha o discurso articulado. Um dia, lendo jornal, descobri um curso de cultura negra no Parque Lage, com Lélia Gonzalez, antropóloga, socióloga, romancista, ativista e, por acaso, negra. Na aula inaugural, ela disse: ‘Sei por que vocês estão aqui, mas quero deixar claro que não temos tempo para lamúrias. O que nós temos que fazer é arregaçar as mangas e virar esse jogo’. E nós não éramos apenas jovens, não éramos apenas negros”.
“Na época, cheguei a ser bastante criticada por algumas pessoas radiciais do movimento negro, achavam que eu estava supersexualizando o corpo de uma mulher negra, por conta principalmente do filme Xica da Silva. Eu até compreendo, mas é uma postura muito radical. Só eu sei, na época, como foi libertador me sentir desejada por todos os lugares que eu andava”.
“Virei símbolo sexual e tive problemas com isso, porque todo mundo queria transar com a Xica. Me lembro de transarem comigo e suspirarem dizendo assim: “Ah... Quando o filme se torna realidade...”. Parece mentira, mas ouvi isso de um cineasta. Em outra ocasião, quase fui estuprada por um taxista. Ele olhou pelo retrovisor e disse: “É a Xica”. Quando vi, já estava enfiando as mãos nas minhas pernas. Eu estava de minissaia. Entrei em pânico. Ele começou a furar todos os sinais. Pensei: “Tô ferrada, vou ser sequestrada”. Quase saltei do carro em movimento. Foi tudo muito rápido na minha cabeça. Minha sorte é que o sinal fechou, o motorista teve que parar porque tinha um guarda e eu saltei. Nem paguei o táxi. Brinco que ele já tinha passado a mão nas minhas pernas, então a corrida já estava paga”.
“Quando as pessoas começaram a me chamar de Xica na rua, fiquei bem incomodada. Já tinha uns oito anos de carreira no teatro, tinha feito um filme, novelas… Queria que meu nome artístico, dado pela Marília Pêra [antes, ela usava seu nome de batismo, Maria José Motta], emplacasse, mas as pessoas só me chamavam pelo nome da personagem. Mais tarde, percebi que a Xica era minha madrinha, que não tinha que reclamar da vida, não. Estava tudo certo”.
Como você acredita que o impacto de personagens icônicos que interpretou ressoa nas conquistas e na visibilidade das artistas negras que surgiram nas últimas décadas?
“Isso na verdade quem tem que responder são as pessoas, vejo muitas atrizes, muitas meninas dizendo que se inspiraram em mim. Sim, isso é uma conquista. Eu fico extremamente feliz com isso. Pensa só, eu sou do tempo em que os personagens negros não tinham família, eles viviam a reboque dos outros, geralmente brancos. E quando tinha um espaço para mim, a não ser que o assunto fosse escravidão, não tinha para a Neusa Borges. Quando tinha para a Chica Xavier, não tinha para a Ruth de Souza. Quando as pessoas perguntam se as coisas melhoraram, digo que sim, mas que ainda temos muita luta pela frente. O que me anima é perceber hoje que a maioria dos negros brasileiros têm o orgulho de ser negro, andam de cabeça erguida e não aceitam discriminação”.
Quais foram os maiores desafios e preconceitos que você enfrentou ao longo dos anos, especialmente em uma indústria onde papéis principais para mulheres negras ainda são limitados?
“No meu primeiro protagonismo na televisão brasileira em horário nobre... Ali foi uma das maiores dificuldades que enfrentei. Já tinha feito diversos papeis na TV, já era conhecida por conta do sucesso do filme Xica da Silva (1976), mas essa foi uma grande oportunidade que tive do Gilberto Braga em 1984. ‘Corpo a Corpo’”.
“Este foi um dos grandes avanços para o Movimento Negro no país, discutir uma questão racial em uma novela das oito. Foi uma novela revolucionária, o Gilberto Braga tocou em vários temas tabus, entre eles, o do relacionamento inter-racial. O casal formado pelo Marcos Paulo e por mim causou um rebuliço danado. Os telespectadores que participaram dos grupos de discussão da novela vinham com as visões mais preconceituosas. Uma nordestina dizia que mudava de canal porque não podia acreditar que um gato como o Marcos Paulo pudesse ser apaixonado por uma mulher horrorosa. Outro achava que o Marcos Paulo devia estar precisando muito de dinheiro para se humilhar a esse ponto”.
“Aí eu lembrava da Lélia Gonzales, que eu conheci num curso de cultura negra no Parque Lage, dizendo que não se pode sofrer com esses comentários e que é preciso manter a cabeça erguida. Porque ficar de vítima reclamando é muito fácil. Fácil, chato e contraproducente. Lembro também de um caso marcante que tenha me acontecido com relação a racismo. Pegando Salvador como exemplo e considerando que a Bahia é uma pequena África, lembro de dois. Estava numa festa com a Elke (Maravilha), de classe média alta, sem outros negros além de mim, começaram a perguntar por que eu estava ali, quem me levou? Um clima horrível. Noutra vez, estava na praia com Caetano (acho que era no Farol da Barra), passou um cara gritando “Pra quem será que ela deu pra fazer sucesso”? Eu estava vivendo um momento de exposição. O Caetano foi lá e enfrentou o cara, deu um passa-fora nele, que saiu com o rabo entre as pernas”…
Como o mês da Consciência Negra reforça a importância da representatividade, e o que você considera essencial para que essa data gere reflexões sobre o papel das mulheres negras na cultura?
“Novamente, fico muito feliz que nossa luta venha se fortalecendo a cada ano que passa, sabemos que falta muito ainda. Para mim, o dia 20 de novembro, é um dia muito importante para o nosso país e sociedade, um dia de reflexão contra o racismo, mas, que essa reflexão reflita todos os dias na nossa sociedade”.
“O recado que deixo é que devemos lembrar sempre que somos bonitas, capazes e não somos inferiores. É nosso dever passar esses pilares e informações para as nossas crianças e reforçar que a cultura negra entre no currículo escolar porque só assim poderemos trabalhar a autoestima dos jovens e só dessa forma eles podem se orgulhar de serem negros”.
Durante sua carreira, você sempre foi ativa na luta pelos direitos da comunidade negra e pelo combate ao racismo. Como esses valores moldaram suas escolhas profissionais e artísticas?
“Eu vejo a minha trajetória como uma missão. Eu me sinto predestinada. Tudo que eu tenho feito e tentado fazer é da melhor forma possível, com a preocupação de que seja com muita responsabilidade e com muita dignidade. Fico muito honrada, por exemplo, quando alguma mulher, principalmente uma mulher negra e jovem, fala que eu sou uma inspiração. Hoje eu vejo que o reconhecimento é uma coisa importante”.
Como foi, para você, construir uma carreira de relevância em um setor tão competitivo e que, por tanto tempo, ofereceu poucas oportunidades para atrizes negras?
“Nunca desisti, e sempre me apaguei a frase que a Lelia Gonzalez me disse (temos que arregaçar as mangas e virar o jogo), sempre lembro disso, e nunca desanimei, perseverei, até hoje penso nisso e me apego"!
Há algo que você gostaria de ver mudando na forma como o mercado audiovisual retrata personagens negros?
“Sim, queria ver famílias inteiras, negras, bem sucedidas, juízes, promotores, advogados, professores... Também queria ver mais autores negros, diretores, por aí vai... Temos muita luta pela frente ainda”.
Nos anos 70/80, quando voltou dos EUA, você fez um curso com a ativista Lélia González. O que isso influenciou e mudou na sua vida como mulher preta?
“Então, foi nessa temporada, nos Estados Unidos, que eu realmente me aceitei com as características da minha origem, de mulher negra. Na peça, o Boal tinha um esquema que ele chamava de coringa. Nós tínhamos um Zumbi, que era o Lima Duarte, mas em vários momentos da peça, cada um de nós assumia o papel do Zumbi. E então a gente foi fazer uma apresentação no Harlem, uma apresentação de cortesia. E aí, lá fui eu, fazer ‘Arena Conta Zumbi’, usando uma peruca lisa, chanel”.
“Depois da apresentação, o Boal foi chamado - porque o pessoal do Harlem não dá mole mesmo, principalmente durante essa fase do ‘Black is Beautiful’ - e falaram para ele ‘o que essa alienada está fazendo no seu elenco?’. E eu era a única negra do elenco. Aí ele respondeu que eu não era alienada, mas que se eu preferisse usar o cabelo assim, não seria ele a querer mudar isso. Mas eles acharam esquisito eu levantar o dedo e falar que era Zumbi, mas com peruca lisa. Foi então que depois do jantar o Boal veio conversar comigo e eu fiquei tão constrangida, porque eu achei que eles tinham razão: uma coisa sem nexo, sem sentido”.
“Nada contra quem gosta de alisar o seu cabelo, sou contra essa patrulha, a pessoa precisa ser feliz, mas o que eu critico em mim, no passado, é que eu tive um processo de embranquecimento para ser aceita e ter acreditado que para ser bonita eu tinha que ter o perfil do branco. Eu já pensei em fazer uma cirurgia no nariz, pensei em comprar uma lente de contato colorida, alisava o cabelo, cheguei a investigar se existia alguma cirurgia que diminuísse o bumbum…
“... E aí comecei a fazer a peça com a peruca black power. Foi uma troca de perucas! Teve até uma reportagem, de um jornal de São Paulo, que mostrava eu estava embarcando de peruca chanel e voltando para o Brasil com a peruca black power. Isso foi muito significativo mesmo. E de alguma maneira isso foi bom porque as minhas filhas já não passaram por esse processo. Elas já foram educadas ouvindo o tempo todo: nossa, como você está linda! Com as trancinhas, com o black power, com os turbantes. Já foram educadas ouvindo isso o tempo inteiro”.
Zezé, com mais de 50 anos de carreira, você é reconhecida nacional e internacionalmente como uma figura importante na construção dessa representatividade. Como é para você saber que abriu caminhos e inspirou tantos artistas negros ao longo dos anos?
“Olha eu agradeço a Deus todos os dias por isso, eu sempre digo quando me perguntam isso, que nunca desistam do sonho, sem sonho é impossível ser feliz. E temos que preservar também”.
Leia mais
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor.