Gastão Reisdivulgação
Publicado 19/10/2024 00:00
Ainda me recordo bem de uma pergunta que me foi feita na porta de entrada do Departamento de Economia da Universidade da Pensilvânia, nos idos de 1979. Era um sábado, e a porta de vidro estava trancada. Um professor do departamento, que eu não conhecia, do lado de dentro, notou que eu queria entrar. E me perguntou de chofre: “Are you legitimate? (“Você é legítimo?”). Ele queria saber se eu era aluno do departamento. E respondi, com convicção: “Yes, Sir!” (Sim, senhor!). Ato contínuo, abriu-me a porta sem me pedir qualquer prova. Confiança.
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Teria sido mais simples me perguntar se eu era aluno. Por outro lado, reflete o valor dado pelos americanos à questão da legitimidade. Lembrei-me, depois, daquele fato histórico, bem conhecido, sobre um imposto criado pela Coroa inglesa que foi questionado pelos americanos com a famosa frase: “No taxation without representation.” Ou seja, “Imposto só com representação”. Os colonos americanos questionavam a legitimidade do governo inglês para lhes cobrar imposto sem consultá-los antes.
Dado o enquadramento dos parágrafos anteriores, vejamos, em breve relato histórico, o que ocorreu conosco nesta questão da legitimidade. Tomemos a Carta de 1824, sempre criticada por ter sido outorgada. Mas, como sempre, sem fazer história comparativa. Ela foi elogiada por juristas ingleses, e foi a que mais durou até hoje em nossa história constitucional (65 anos). Por quê?
A resposta não é complicada. Foi feita por um grupo de juristas qualificados, juntamente com a presença de D. Pedro I. Ela se esmerou em ser fiel à tradição de que Direito Constitucional não se confunde com Direito Comum, indevidamente misturados na Carta de 1988. O fundamental foi ter preservado o interesse público. No cerne, a concepção do Poder Moderador, instrumento eficaz para controlar os desmandos do andar de cima, perdido em 1889. E jamais usado para oprimir o povo.
Foi nossa única constituição enviada às Câmaras Municipais para ser homologada por estas, uma preocupação de D. Pedro I para lhe dar legitimidade. E funcionou bastante bem, enquanto durou, na defesa do bem comum. Em 1889, com a República, nada parecido ocorreu. E teve início a triste tradição de mandar a conta para o Povo pagar sem ser consultado. E que se mantém até hoje. O Fundão Eleitoral, de 6 bilhões de reais, foi aprovado pelo Congresso sem ser ratificado pela população. Muito provavelmente, se consultada, optaria em destinar tal montanha de dinheiro para educação e saúde.


Para piorar, o bilionário Fundo Partidário fez o mesmo, sem a consulta popular direta. A profunda desilusão da população com os políticos e com os partidos levou a uma crise de legitimidade em que os eleitores passaram a se recusar a contribuir espontaneamente para sua manutenção. E qual foi a solução? Criar o referido fundo partidário, obviamente, vale repetir, sem ser homologado pela população. Nada parecido ocorreu ao longo do Império dada a seriedade com que foram tratados os orçamentos públicos, sempre implementados à risca e monitorados em sua execução. O escrito era para valer.
Tomemos, agora, o exemplo do Chile para fazer uso de história comparativa. Sem que eu tenha simpatia alguma por Pinochet, é fato que ele outorgou uma constituição feita por um seleto grupo de juristas. E sem meter o bedelho em assunto que desconhecia. Nos últimos anos, houve a eleição de um governo de esquerda, que resolveu propor uma nova constituição para o País. Foi na linha de prometer o paraíso na terra. Mas teve a dignidade de consultar a população que a rejeitou. Um novo texto, menos alucinado, foi proposto ao povo, que o rejeitou novamente.
Restou a pergunta: por que o povo preferiu manter a constituição outorgada por Pinochet? Simplesmente porque foi a que deu ao País estabilidade e condições de crescer nas últimas décadas acima de qualquer outro país latino-americano. O Chile tem hoje uma renda per capita, medida pelo PPC (paridade do poder de compra), de cerca de 24 mil dólares, enquanto nós patinamos no patamar de 10 mil. E perdendo posição relativa em relação aos demais países.
Justamente hoje, dia em que escrevo, 15/10/2024, foi anunciado pelos jornais o prêmio Nobel de Economia, em que foram agraciados três economistas: James Robinson, Daron Acemoglu e Simon Johnson. Interessante foi a razão dada para a premiação pela Academia Real de Ciências da Suécia: “Sociedades com um Estado de Direito fraco e instituições que exploram a população não promovem crescimento nem mudanças positivas”. Tem a cara do Brasil atual, não é mesmo?
Certamente, haverá quem contra-argumente, afirmando que a Carta de 1988 foi elaborada por um Congresso com poderes constituintes. Só esqueceram de combinar com o Povo. Ou seja: não lhe perguntaram se gostou do trabalho realizado pelos constituintes. Já que a soberania, como reza o texto constitucional, pertence ao Povo, por que então não consultá-lo? Teria plenos poderes para recusá-la, levando em conta as denúncias de juristas de peso na época, de Roberto Campos, com suas críticas devastadoras, e até de Sarney ao dizer, de público, que, com ela, o País se tornaria ingovernável. Mas não houve um plebiscito, e foi enfiada goela abaixo do Povo.
Onde está a legitimidade? Rigorosamente, não tem!


A curiosa a concepção de que o Brasil é um Estado de Direito, como se fosse uma obviedade. O simples fato de votar não confere a país algum status de democracia. É preciso saber qual o grau de controle que os eleitores têm sobre seus representantes eleitos entre as eleições? No caso do Brasil, é pífio por não ter o voto distrital puro (ou equivalente) e o chamado recall, a possibilidade de revogar mandatos parlamentares entre as eleições.
Para piorar mais ainda, temos um STF, cuja legitimidade tem sido questionada por analistas políticos sérios, inclusive por juristas respeitados nacionalmente. A república, sem respeito mínimo pela população, está em estado falimentar. Hora de pensar em alternativas fora do quadrado.

(*) Economista e palestrante.

Nota: Está no ar entrevista minha no Brasil Paralelo sobre o Papel do Exército na História Brasileira. Contato: gastaoreis2@gmail.com



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