Publicado 23/11/2024 00:00
Em 11 de novembro corrente, como membro do IHP – Instituto Histórico de Petrópolis, a convite, ministrei uma palestra intitulada “Escravidão: Uma visão de heterodoxa de longo prazo”. Valho-me de parte dela para as considerações que farei neste artigo sobre a impropriedade do uso da expressão “racismo estrutural”, no caso brasileiro. Bem mais adequada seria racismo republicano.
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O fio condutor da palestra era dar uma resposta positiva à seguinte questão: seria possível ter uma visão alternativa fundamentada da escravidão fora da tradicional, que inclui o tal do racismo estrutural? Inicialmente, mencionei dois erros a serem evitados pelo bom historiador: (1º) ver o passado com os olhos do hoje; e (2º) tratar o passado fora de uma moldura de história comparativa. Sem estas duas âncoras, muita bobagem pode ser dita no exame de fatos históricos. Uma delas é o referido racismo estrutural.
O passado só pode ser compreendido em profundidade se levarmos em conta os valores sócio-culturais prevalescentes em dado período histórico. A escravidão não foi uma invenção portuguesa. Levando em conta a época em que a humanidade passou a ter registros escritos de sua história, ela acompanhou a humanidade, por cerca de 50 (ou 60) séculos, como um fato normal da vida. Ninguém queria ser escravo, mas todos gostariam de ter escravos, algo corriqueiro por milênios até a chegada dos séculos XIX e XX em que aboli-la se tornou uma ideia cujo tempo havia chegado.
No âmbito da história comparativa, é necessário olhar a casa do vizinho para saber o que estava acontecendo. Ao longo de mais de três séculos, aportaram nas Américas cerca de 10,5 milhões de africanos vivos, tendo morrido cerca de 1,8 milhões na travessia. No mesmo período, houve a captura de 7 milhões de negros e negras por mercadores árabes, que foram levados pelo deserto a pé para seus países. 90% deles, eram castrados em péssimas condições de higiene. Daí a elevadíssima mortalidade, que atingia cerca de 80% dos africanos aprisionados. Salta aos olhos a extrema crueldade. Os árabes não queriam que eles se reproduzissem em seus países.
A escravidão no Brasil foi um processo abrangente, geograficamente amplo. Mas foi permeado por alforrias em escala única, fenômeno inexistente no resto do mundo onde havia escravos. Em Minas Gerais, nos tempos coloniais, na região do ouro, numa população de 400 mil almas, havia cerca de 160 mil negros forros, ou seja, 40% da população. Houve também intensa miscigenação nada comum no resto do planeta. A cultura e as religiões de matriz africana sobreviveram a despeito das perseguições. E influenciaram a cultura portuguesa no Brasil de modo significativo e permanente.
Já a escravidão nos EUA foi um processo geograficamente localizado no sul do país. As alforrias eram praticamente inexistentes. Não houve também um processo de miscigenação, havendo inclusive estados que proibiam por lei o casamento entre as duas raças. Os escravos se tornaram evangélicos pela leitura da bíblia e proibição de religiões de matriz africana. A anomia, a perda das raízes de um povo, foi marcante nos EUA. Os negros se amoldaram, em boa medida, a valores da sociedade branca. Havia inclusive fazendas de criação de escravos. Daí a importação de escravos em menor escala.
Além disso, no Brasil, nas pesquisas mais recentes, o negro nos é apresentado como agente histórico, longe daquela caricatura do ser passivo, que se submetia à escravidão sem resistência. Desde o período colonial, os escravos fugiam das fazendas para os quilombos em busca de liberdade. Situação que se manteve no Império, onde também havia muitos quilombos. A sociabilidade escrava se mantinha na própria senzala, reproduzindo práticas e costumes africanos, sem cair em promiscuidade sexual, onde os negros mais velhos tinham voz e preferência das mulheres. Estas em busca de segurança para si e filhos.

As obras do monarquista Oliveira Vianna e a do marxista Caio Prado Jr., em sua equivocada “História Econômica do Brasil”, com seu viés economicista, nos vendem a economia colonial como simples apêndice agrário-exportador para países europeus. Esquecem que apenas 15% do PIB era exportado, com 85% dele consumidos internamente. Na verdade, quando D. João VI aqui chega, nossa economia já era maior que a portuguesa, com uma renda per capita em torno da metade da americana na época. Hoje não vamos além de 1/4 ou 1/5 da americana. Involuímos.
Nessa semana, tive a oportunidade de ler o artigo de Irapuã Santana, “Verdades Antirracistas” em O Globo, de 18/11/2024, em que ele nos fala literalmente “do tal racismo estrutural”, nos dando uma pista questionadora do uso de tal expressão. Aqui, os negros mantiveram traços culturais na música, na culinária, na religiosidade própria e influenciaram o mundo branco em diversos aspectos, inclusive via miscigenação. Se aqui for estrutural, no caso dos EUA, seria imperioso enunciá-lo como racismo visceral.
Visceral por ter impedido aos negros, por um século após a abolição, até 1960, de se integrarem ao mundo branco. Tudo separado: escolas, hotéis, restaurantes, banheiros, ônibus e sempre entrar pela porta dos fundos, como teve que fazer o atleta Jesse Owens num jantar em sua homenagem na Casa Branca(!). Algo semelhante jamais existiu no Brasil. A princesa Isabel dançou com o engenheiro negro André Rebouças em baile no então Paço Isabel, hoje Palácio Guanabara. Ou o fato de termos tido um Primeiro-Ministro mulato, o barão de Cotegipe, entre 1885 e 1888, cem anos antes de o Obama, também mulato, que assim se assumiu, ser presidente dos EUA.
O movimento negro precisa ter olhos mais abertos para o feroz racismo republicano brasileiro, que se materializou na política do embranquecimento. O Império, via leis abolicionistas aprovadas por gabinetes conservadores, fez muito mais pelos descendentes de africanos do que a república jamais fez. O jornalista negro Tom Farias, hoje na Folha de SP, afirmou que o século XIX foi o de ouro para os negros. Acrescento que o foi também dos brancos pelo respeito do regime de então ao povo e dispositivos constitucionais que permitiam controlar o andar de cima. Muito diferente do que ocorre hoje.

Nota: Link https://vimeo.com/1029291311/19635ed4ea?share=copy para minha palestra, com debate, no IHP, em 11/11/2024, intitulada “Escravidão: Uma visão heterodoxa de longo prazo”.
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