Gastão Reisdivulgação
Publicado 14/12/2024 00:00
Thomas Paine (1737-1809) foi um filósofo atípico em termos de sua origem familiar humilde e de suas quase quatro décadas iniciais de vida em que a mediocridade assumiu o palco. Era filho de uma família que lutava com dificuldades financeiras, e que fez das tripas coração para conseguir dar-lhe uma boa educação. Ao que se sabe, teve mau desempenho em várias áreas: no ensino, no comércio de tabaco e na coleta de impostos. Até mesmo no seu estranho casamento que, ao se separar, nunca havia vivido com sua própria mulher.
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Ele nasceu na Inglaterra, seus pais eram quakers, aquele grupo de protestantes que levava o cristianismo a sério. Os que emigraram para os EUA nunca embarcaram na matança de índios do início da colonização americana. Eles respeitavam o princípio fundamental do cristianismo: o respeito às pessoas humana sem considerar seu status social ou raça, bem diferente da tradição grega ou romana. O grande Aristóteles dizia que o escravo era um ser inferior, aparentemente sem se importar muito com as reais condições sociais causadoras dessa suposta inferioridade.
Na verdade, a criação quaker de Paine deixou marcas profundas que ele levou vida afora. Em especial, aquela visão de que os seres humanos são fundamentalmente iguais. Seus escritos políticos foram influenciados pelo modo como fora criado. Foi também a base de seu projeto reformador que floresceu após sua ida para os EUA em 1774, seguindo uma recomendação de Benjamin Franklin, que lhe deu uma carta de apresentação. Foi com ela que obteve um emprego na Pennsylvania Magazine (Revista da Pensilvânia), primeiro como jornalista e depois como editor.
Um artigo que publicou na revista, já como editor, intitulado “Justiça e Humanidade”, lhe granjeou fama, propondo o fim da escravidão. Mas o artigo que realmente o colocou sob os holofotes foi publicado no início de 1776, “O Senso Comum”, em que ele aconselhava o país a lutar por sua independência, rompendo com o vínculo colonial que o ligada à Inglaterra. Atacava fortemente a ideia de uma monarquia hereditária com apoio no discutível argumento de que ela violava o princípio da igualdade, que seria natural da condição humana. (Cabe lembrar que a coroa do novo país foi oferecida a George Washington, primeiro presidente americano, que a recusou.)
Tomemos as palavras de Thomas Paine contra a monarquia hereditária: “Sendo que todos os homens são originalmente iguais, ninguém poderia ter por nascimento um direito de estabelecer para sempre sua família em preferência perpétua sobre todas as outras, e, embora ele próprio possa merecer algum grau decente de honra da parte de seus contemporâneos, ainda assim seus descendentes podem estar longe de ser dignos de herdá-lo. Uma das mais fortes provas naturais da insensatez do direito hereditário dos reis é que a natureza o desaprova, senão ela não o tornaria tão frequentemente ridículo ao dar à humanidade um asno no lugar de um leão”.
A argumentação do parágrafo anterior de Paine parece, à primeira vista, irrefutável. Mas será mesmo? Em seguida, uma réplica bem fundamentada.
Antes de mais nada, coloquemos Paine no tempo em que viveu. Na maioria dos países de então, os reis reuniam em sua pessoa as chefias de governo e de Estado. Tinham, portanto, muito poder, mesmo na Inglaterra, que foi o primeiro país a colocar as coisas em seu devido lugar. Na verdade, foi ao longo do século XIX que os monarcas passaram a ser apenas Chefe de Estado e não mais de governo. Esta mudança teve profundas implicações para as monarquias em que os reis passaram a exercer o papel ideal que lhes cabe. Uma espécie de fiscal do Primeiro-Ministro. Vejamos as razões.

Antes, porém, cabe registrar que, para Paine, o governo só é legítimo se for do povo e para o povo. Não inclui o pelo povo de Lincoln. Teria Paine uma sintonia fina com Dom Pedro I, que afirmava “tudo para o povo e nada pelo povo?”. Esta frase de D. Pedro I sempre foi malvista em função de uma interpretação rasteira. Sua preocupação tinha como alvo livrar o povo do populismo, situação em que o próprio povo acaba sendo prejudicado pela demagogia dos poderosos, sempre com péssimos efeitos de longo prazo para a população.
Vamos agora à defesa do Chefe de Estado hereditário em contraposição a um eleito. Estamos falando de monarquias parlamentares constitucionais em que o monarca funciona como um fiscal dos atos do Primeiro-Ministro. O simples fato de ter que prestar contas semanais do que está fazendo é um poderoso instrumento para evitar eventuais desmandos do poder executivo. Este é o caso já secular da Inglaterra. E o foi do Brasil ao longo do século XIX, em que o dinheiro público foi tratado com extremo respeito. O segredo era a vigilância permanente.
Mas caberia naturalmente a pergunta; por que não um chefe de Estado eleito como é o Primeiro-Ministro num regime parlamentar? Vamos listar cinco perguntas em relação a um chefe de Estado eleito e verificar se ele atende aos requisitos necessários. Primeira: ele depende de partidos políticos para se eleger? Sim. Segunda: ele precisa do apoio de políticos para se eleger? Sim. Terceira: sua visão de longo prazo seria deficiente? Sim. Seu horizonte finda com seu mandato. Quarta: haveria desconexão entre seu interesse pessoal e o público? Muito provavelmente sim. Quinta: ele poderia titubear diante de uma oferta tentadora de corrupção? Sim.
Na verdade, um monarca como chefe de Estado poderia responder às perguntas do parágrafo anterior com uma sequência de nãos peremptórios. E é sua posição hereditária que lhe permite dizer não sempre, coisa impossível para um chefe de Estado eleito. Para dar apenas um exemplo: como oferecer a um monarca algo melhor do que já tem para corrompê-lo?
Thomas Paine, se levasse em conta estes argumentos, veria com olhos positivos a hereditariedade dos monarcas. A solução via eleição de um chefe de Estado acaba trabalhando contra o interesse público.

Nota: Digite no Google: “Dois minutos com Gastão Reis: Que um mau governo dure pouco”. Ou pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=SC10Na2puY4
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