Publicado 19/02/2022 00:00
Em meio à tragédia em Petrópolis, a ameaça de guerra na Ucrânia, pandemia, falta de vacinas, desemprego, inflação e uma enxurrada de fake news, fica difícil escrever casos quase engraçados. Fui para longe da TV, do rádio e celular. Peguei a velha Olivetti, recém-reformada (com a ajuda do Zé Francisco) e me instalei, bem cedinho, no quintal: o litro de groselha, copo, a máquina de escrever, rodelas de salaminho e uma resma de papel. Assim, fiquei longe de tudo e de todos. Foi o que pensei. Já havia acionado a mente para lembrar de uma história quando escutei uma voz estridente:
— Ô Luar, tá sozinho? Já tô chegando para um papo com você!
Pronto, acabou o sossego. Fui descoberto por vizinho. O cara estava abraçando um saco com pães. Quase que bati em retirada. Mas, não deu tempo.
Tentei dificultar a chegada dele:
— Tá com o passaporte das vacinas? A máscara tá limpa? A família não está esperando o pão? Mãos limpas? Trouxe álcool?
Nada adiantou. Quando falei no álcool, ele riu. Bem, já senti que iria demorar. E foi logo perguntando se a cerveja estava gelada. Bolas, eu estava diante da garrafa com groselha, vermelhinha. Avisei que o Ibiapina e o Fred, dias antes, haviam terminado com meu estoque técnico e que aceitava doações. E o cara já estava sentado ao meu lado e mudando de assunto:
— Você é jornalista e ainda escreve com esse dinossauro (apontando para a Olivetti)? Cadê o computador e o celular? Cortaram a internet? Não pagou a conta? Está inadimplente? 
E foi atacando o salaminho. Reagi e, claro, peguei o pão dele. Oh, vida. Passou outro vizinho e viu a "reunião" no quintal:
— Cadê a cerveja? Não tô vendo nenhuma. Peraí que vou pegar!
Céus, já fui cobrindo a Olivetti e me preparando para mais um encontro não programado com vizinhos. Eu tenho prazo para entregar o texto ao jornal. Tudo tem seu dia certo. Abomino a intromissão e detesto ser grosseiro. E o salaminho já estava no fim. E o segundo vizinho já voltava com um balde com cervejas. E ele estava acompanhado de outro vizinho, carregando um saco de carvão. Eu? Rezando para chover. Será que ninguém trabalha? Hoje é um dia comum, longe do fim de semana, não é feriado. Ih, tenho contas a pagar e, portanto, preciso trabalhar. Me sinto a Ucrânia sendo invadida pela Rússia.
— Amigos, estou trabalhando. Desculpem, não vou ter tempo de confraternizar com vocês.
Tentei ser educado. Mas, vejam o perigo, escutei o barulho de garrafas sendo abertas. Me senti em meio a cena de teatro burlesco. Bolas, guardei a máquina de escrever, reforcei as rodelas de salaminho, e me rendi ao churrasco. Chegaram mais vizinhos, inclusive aquele que é um desempregado profissional. Chegou com a desculpa de que estava vendendo máscaras de proteção à covid. E foi procurando uma cadeira. E, mais outro apareceu.
— O que estamos comemorando?, perguntou alguém. Logo, o primeiro vizinho, o dos pães, respondeu:
— O sossego do Luar!
Bolas, alguém já estava colhendo as frutas de conde e outros atacaram as acerolas e uns poucos cachos de uvas que ainda estavam amadurecendo nas parreiras. Não é para ficar neurastênico? As bananeiras estão sem frutos, amém. Faltou pouco para o terceiro infarto. A todo instante, diante de tanta cerveja, avisava sobre o mictório instalado ao lado do canil.
— Por favor, não façam xixi nas árvores!
Consegui reproduzir esta história durante a madrugada, no interior da caverna, cercado pela TV, celular, rádio e computador. Nunca mais trabalho no quintal. Não lembro se esqueci algum outro detalhe importante da "invasão". Ah, os pássaros que frequentam, ou habitam, as árvores do quintal, já voltaram após o furdúncio. Afinal, os pássaros que aqui gorjeiam...
 
Leia mais