"Dei corda no velho e conservado gramofone"arquivo o dia
Publicado 17/09/2022 06:00
Vizinhos são superiores ao tempo. Acabei de constatar. Nem o vento, o frio e a garoa afastaram o pessoal do bate papo matinal. Assunto do dia: feijão fradinho, pintado de verde, para ser vendido como feijão de corda. O processo de falsificar o tipo da leguminosa é artesanal. Para a maioria dos amigos, o lucro é ínfimo e não vale, financeiramente, o crime. Quanto à saúde de quem vai comer (ou já comeu), só verificando nas UPAs desse estado afora.
O vizinho de bombordo foi logo bancando o sabichão: "Eu não caio numa armadilha desta. Conheço feijão de corda e não compraria o falso". Demorou para que se falasse do crime de Saúde pública. E, a pergunta lançada pelo Adilsinho: "O criminoso que aplicou o golpe ainda tá solto?". Foi providencial. Fred não deixou barato: "Como não ver que o feijão está pintado? E a cor, na fervura, na água?".  Lembram do ditado "comeu gato por lebre"?

Caramba, 18°C no quintal. Mas, o vento dá sensação de 17ºC, ou menos. Não tive escolha. Todos na varanda, pelo menos sem a garoa. O café da garrafa térmica acabou. O vizinho do Sudeste, meio abusadinho, foi mais além: "Dá para sair uma dose de conhaque?". Fingi que não escutei. Pô, logo cedo, pela manhã? A conversa é sobre feijão. Não sobre uvas !
Mas, Gordinho, nosso ex-taberneiro, mastigando nêsperas que colheu no pé da frutífera, dono de memória pródiga, não resistiu: "Ainda tem aquele queijo Canastra?". Se eu não tiver cuidado, esse encontro vai virar piquenique. Raciocínio rápido, avisei em um tom de voz gutural, quase alto: "Gente, estou trabalhando, ainda não consegui varrer o quintal e aqui não é nenhum restaurante popular. São quase 7 horas de matina !
E, chega mais um vizinho. Paulo César, o faz tudo da área: "Ainda sobrou café?". O cara tá de camiseta, bermuda e sandálias tipo havaiana. Caramba, esse merecia o conhaque. Mas, ele não bebe e não fuma. Mas, come bem... Tá pesando pouco mais de cem quilos. Foi ele quem lembrou: "Ô Luar, hoje é dia da sopa do cavalo cansado, com torradinhas ao azeite". Respondi com um leve e quase imperceptível aceno, afirmativo, com a cabeça. Parece até que adivinhou.

Enquanto a questão do feijão verde voltava, finalmente, ao assunto, dei corda no velho e conservado gramofone. Presente de querido amigo Joel Cruz Credo, fotógrafo, que já não habita nosso mundo, infelizmente. Tem mais de 50 anos em minha estante. Vez por outra, em ocasiões especiais, deixo o bicho funcionar.
E, neste dia chuvoso e complicado, lembrei dele. Com a corda no máximo, coloquei o disco de acetato, gravado com cantos Gregorianos, e deixei rolar. Os velhos amigos pararam de falar, se entreolharam e, parecendo passe de mágica, se e resolveram que era hora de sair de fininho.
Foi Fred que deu o aviso: "Vamos cair fora. O velho Luar quer trabalhar. Cantos Gregorianos eu não aguento". Não perdi a oportunidade em justificar: "Minha homenagem à falecida Rainha da Inglaterra. "A Rainha está morta. Viva o Rei!". E, na saída dos vizinhos, quando passavam sob a nespereira, onde as maritacas se fartavam nos frutos, a maioria foi atingida pelo "bombardeio" das aves. Só me restou gritar, como consolo: "Dizem que dá sorte...".
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