Publicado 10/04/2023 09:00
Nascida no Maranhão, a cantora Kaê Guajajara veio para o Rio de Janeiro no fim da infância, e cresceu na Maré. Neste mês, ela lança o álbum Zahytata — que, traduzido da língua guajajara zeeg'ete significa "Estrela". Na nova obra, ela pauta "a vivência, em vez da sobrevivência", celebrando a superação de várias formas de violência. Em entrevista a O DIA, a artista fala sobre o apagamento da identidade indígena no meio urbano e a necessidade de políticas públicas para povos não aldeados. Ela conta ainda como a arte tem o poder de criar mais empatia com sua mensagem: "São armas fortes para serem usadas no combate aos pré-conceitos das pessoas sobre nós".
O DIA: Como crescer na Maré influenciou a conexão com sua origem? Como foi lidar com essa mistura de culturas?
Kaê: Mesmo fora da minha terra natal, minha cultura nunca mudou; ao contrário, foi atravessada por essa vivência. Eu não me enxergava, e acho que isso acontece com muitos que estão nas cidades. Os espaços urbanos não são pensados para nós, o que gera uma experiência cercada de racismo e preconceito. Uma vez, convidada por uma marca para um passeio de barco, outros convidados ficavam falando "nossa, uma índia aqui, que doidera". Inconscientemente, as pessoas têm um "mapa" de onde podemos estar. Somos seres humanos que podem existir independentemente de onde se espera que estejamos.
Para você, como é ser indígena no Rio de Janeiro?
A origem dos problemas é a falta de políticas públicas que nos reconheçam. Há uma mentalidade colonizadora que apaga nossas identidades e territórios. Certa vez, quando eu era recepcionista, me pintei de jenipapo — uma proteção que fazemos — e fui trabalhar. Quando cheguei, me mandaram voltar para casa. Olhei para meus colegas: os brancos não falaram nada, e os pretos que estavam de turbante podiam ficar. Isso me fez perceber como outros grupos têm seu avanço reconhecido, enquanto indígenas ainda são invisíveis no dia a dia. Por isso, é importante demarcar não apenas em lugares distantes, mas também em espaços urbanos, como a Aldeia Maracanã.
Como você recebeu a criação do Ministério dos Povos Originários, e o novo nome da Funai, com povos indígenas no plural?
Eu esperava que essa mudança fosse acompanhada por uma transformação mais radical na Funai, que lutasse por todos, não apenas pelos aldeados. Precisamos reconhecer outros territórios além dos demarcados. Novas leis são necessárias para nos incluir e superar a divisão criada pelo governo entre as diferentes povos. O asfalto não pode nos apagar, pois continuamos aqui resistindo. O governo deveria ouvir todas as comunidades, como a própria Aldeia Maracanã, que é frequentemente deslegitimada.
Como a arte contribui para a representatividade dos povos originários?
De um lado, as pessoas ficam curiosas com os artistas indígenas, mas muitos se fecham quando somos mais incisivos e falamos, por exemplo, que o Brasil foi invadido. Mas o caminho da arte, além de dar visibilidade, gera uma escuta sensível. Quando cantei sobre o território ancestral, em 2019, foi um choque: percebi como a canção afetava as pessoas de uma forma que o discurso falado não conseguia. Isso se alastra para outras linguagens, como teatro, dança, livros e poemas: são armas fortes para serem usadas no combate aos pré-conceitos das pessoas sobre nós. No álbum Zahytata, que lanço este mês, celebro a vivência, não só a luta. Também queremos falar sobre nossas alegrias e outros sentimentos, não só da nossa dor.
Como foi a decisão de cantar em zeeg'ete, e não só em português?
Embora eu cantasse em português para ser entendida, havia uma contestação por usar a língua colonizadora que nos foi imposta. Além disso, eu sentia falta de poder me expressar na linguagem do meu povo. Pessoas morreram no Brasil por não poderem falar o seu idioma. Isso é dar uma volta por cima e quebrar um ciclo de violência que nossos antepassados viveram. Uma coisa que me alegra é hoje termos artistas da etnia originária do Rio, cantando em sua língua, como Kandu Puri. É muito bom ouvir essas músicas estando neste cenário: dá esperança de que nem tudo acabou. O sentimento de representatividade é inigualável.
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