Publicado 22/01/2024 05:00
A deputada estadual Renata Souza (PSOL) é a mulher mais votada da história da Alerj. Na Assembleia, presidiu as comissões de Direitos Humanos, de Combate à Pobreza e agora comanda a Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, a Frente Parlamentar Contra a Fome e a CPI do Reconhecimento Fotográfico. Em entrevista à coluna, a parlamentar falou sobre o que é indispensável para 2024. "Há uma demanda urgente pela popularização da política, com uma maior representatividade de gênero, raça e território nos parlamentos e governos. Além das pautas urgentes para políticas de emprego e renda, de saúde, de educação e superação da fome e da pobreza, uma política de segurança pública com perspectiva de direitos humanos".
A senhora preside a Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher. O Rio de Janeiro é o segundo estado com mais casos de violência doméstica. Como efetivamente mudar essa realidade?
O governo deve tratar as mulheres como prioridade nas políticas públicas, em especial no orçamento do estado. Porque mudar essa realidade trágica exige políticas públicas múltiplas, diversas, integradas e com investimentos, tanto para prevenção como para o tratamento dos casos de violência de gênero. Em caráter preventivo, há necessidade de investimento forte em educação, saúde e cultura, na formação e treinamento de profissionais preparados para formar pessoas livres de preconceitos, respeitadoras dos direitos das mulheres, inclusive das mulheres trans, e das lésbicas e bissexuais, defensoras da diversidade e de valores como a liberdade e a equidade. É preciso também haver uma política antiarmamentista, já que cerca de 20% dos feminicídios são por arma de fogo, assim como para a desnaturalização da violência como linguagem e como cultura. Além disso, os profissionais da educação, da saúde, da segurança pública devem estar preparados para identificar situações de risco, para saber intervir de modo a prevenir a violência ou para agir de modo a garantir condições mais adequadas de atendimento às vítimas e que permitam a rigorosa responsabilização dos acusados. Para reduzir os impactos dessa violência de gênero cotidiana tão frequente, é preciso forte investimento em espaços de acolhimento, de escuta e apoio, e de encaminhamento para a solução das demandas emergenciais de defesa da integridade física e psicológica das mulheres. Isso exige investimento em aparato jurídico, psicológico e assistencial, além da garantia de emprego e renda para a autonomia financeira, material e psicológica dessa mulher em situação de violência. Isso exige que a mulher esteja prioritariamente no orçamento público ou continuaremos a amargar a dor do feminicídio.
No ano passado, a senhora denunciou racismo em uma plataforma de inteligência artificial que fez uma imagem sua segurando uma arma. Dá para relacionar o fato com o tema da CPI do Reconhecimento Fotográfico, que a senhora preside?
Eu descrevi uma mulher negra com uma favela ao fundo e a ferramenta de “Inteligência Artificial” introduziu o elemento da arma na mão da personagem porque foi treinada para reproduzir o racismo. O racismo algorítmico nada mais é do que uma manifestação sofisticada do racismo estrutural, o mesmo racismo que observamos na forma como o Estado historicamente age na criminalização seletiva da juventude negra e favelada. Não por acaso, a maioria dos erros em reconhecimento fotográfico atinge jovens negros. Álbuns de fotografia físicos ou mosaicos digitalizados compostos de fotos retiradas de redes sociais igualmente vulnerabilizam negros favelados que nunca cometeram crimes e acabam "reconhecidos" em processos viciados pelo racismo. Equipamentos de reconhecimento facial de estabelecimentos privados têm recorrentemente levado pessoas negras à prisão, "por engano", assim como são pessoas negras que em geral são identificadas por agentes de segurança como suspeitas logo que entram em lojas, farmácias etc. Enfim, é o racismo que determina o tratamento extremamente desigual que o Estado dispensa às pessoas conforme a sua aparência, a sua cor. Temos lutado na CPI pela mudança dos procedimentos policiais de reconhecimento fotográfico para que superemos o viés racista desses procedimentos.
Quais têm sido as iniciativas legislativas para combater o racismo religioso?
Por lei, o racismo religioso é crime como todas as vertentes do racismo. A Constituição Federal é cristalina na defesa da liberdade religiosa. O Código Penal Brasileiro é nítido também. Mas isso não tem sido o bastante pra derrotar o racismo religioso. Por isso, lei estadual de minha autoria criou o Observatório Mãe Beata de Iemanjá, pra produzir dados, monitorar e denunciar o racismo religioso, algo que ainda precisa sair do papel. Além disso, em outra lei de nossa autoria, foi instituído o Abril Verde, mês dedicado ao combate ao racismo religioso. Precisamos investir cada vez mais na visibilização, valorização, proteção e fortalecimento dos terreiros e povos de axé, principais vítimas da violência preconceituosa de fundamentalistas religiosos.
A senhora é a deputada com o maior número de iniciativas legislativas na Alerj em defesa dos direitos das pessoas LGBTQIAPN+. Quanto falta avançar em políticas públicas?
Fiquei muito orgulhosa por ter recebido da comunidade LGBTQIAPN+ o título de musa da Parada do Orgulho Gay de Madureira. Tem um significado forte pra mim essa homenagem porque vem em reconhecimento a um trabalho intenso nessa pauta. Não é qualquer coisa ser a parlamentar com maior número de iniciativas para a população LGBTQIAPN + do Brasil. São cerca de 45 iniciativas já apresentadas até agora. A dificuldade é fazer com que se aprove e se regulamente no Rio. É evidente que houve avanços na conquista de leis em defesa de pessoas LGBTQIAPN+, mas há vários ataques retrógrados em leis e na vida cotidiana a discriminação e a violência ainda são enormes. Sofrem mais as pessoas LGBTQIAPN+ negras e periféricas. Políticas de cotas são muitíssimo importantes pra garantir o acesso dessa população à educação e ao mercado de trabalho. Também as políticas educacionais para desconstruir o preconceito são fundamentais.
O que a senhora considera indispensável tratar em 2024, ano eleitoral?
Há uma demanda urgente pela popularização da política, com uma maior representatividade de gênero, raça e território nos parlamentos e governos. Precisamos da política ocupada por quem representa de fato a maioria negra, pobre, mulheres e LGBTQIAPN+, por pessoas com deficiência, por quem sabe o que é enfrentar no cotidiano as consequências de um modelo político e econômico pensado por uma irracionalidade patriarcal e racista. Além das pautas urgentes para políticas de emprego e renda, de saúde, de educação e superação da fome e da pobreza, uma política de segurança pública com perspectiva de direitos humanos. São pautas urgentes. Por isso, há a necessidade da conquista de uma verdadeira democracia, não só com a participação, mas com a direção popular.
Deputada, em que estágio estão as investigações para identificar quem mandou matar Marielle?
Essa demora na conclusão das investigações e na identificação dos mandantes é bastante auto-denunciatória do poder desse ou desses criminosos que determinaram o feminicídio político de Marielle, essa referência de mulher na política que também era minha amiga e companheira de lutas. Enquanto os mandantes não forem identificados e responsabilizados, seguimos em nosso país numa democracia sob risco, vulnerável perante a ameaça autoritária, racista e misógina cavada por aqueles que comemoraram esse terrível crime contra uma mulher, mãe, vereadora e legítima representante das mulheres, do povo preto e das pessoas LGBTQIAPN+. Quem mandou matar a Marielle e por quê? Seguirei na luta pela justiça por Marielle e Anderson.
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