Publicado 29/01/2024 05:00
Quando se fala sobre a organização do Carnaval de rua no Rio de Janeiro, o nome de Rita Fernandes é logo lembrado. Jornalista e economista, com ampla vivência em projetos culturais e grandes eventos, ela é presidente, desde 2004, da primeira associação de blocos de rua fundada na cidade, a Sebastiana, que reúne 15 dos mais tradicionais do Rio, com mais de 1 milhão de foliões. Nesse período, Rita tem visto o Carnaval se transformar por um novo público. "O Carnaval virou uma pauta. Essa pauta está no corpo, na música, na forma de se colocar. Há uma mudança de comportamento visível".
SIDNEY: Como a senhora avalia o Carnaval de rua antes da pandemia e agora?
RITA FERNANDES: O Carnaval, depois da pandemia, ainda está se acomodando. A gente vinha antes da pandemia de um momento, com várias restrições e várias dificuldades, o Carnaval de rua. Principalmente, em função da política do prefeito Crivella, que odiava o Carnaval. Então a gente estava lutando muito no Rio para poder vencer muitos obstáculos e havia um modelo, um determinado modelo de Carnaval. Mas a gente estava muito na guerra, na luta. Depois, ficamos dois anos sem botar o bloco na rua, 2021 e 2022, e só fomos fazer isso de novo em 2023. E aí foi uma catarse. O Carnaval de 2023 foi uma catarse, uma necessidade imensa de ir para essa rua. E foi o que a gente viu. Um Carnaval inchado, muito cheio, muitos blocos, muita gente e muita gente querendo muito ocupar essa rua, essa explosão, toda de alegria. A gente hoje percebe nitidamente que tem um Carnaval em transformação. Até porque tem uma nova geração assumindo esse lugar. Uma nova geração ligada a essa era de aquário. Essa geração mais nova e que já traz outras questões junto para esse Carnaval, que são questões de gênero, de afirmação, são questões de corpo. A gente é uma pauta, né? O Carnaval virou uma pauta. Essa pauta está no corpo, na música, na forma de se colocar. Esse é até o tema do meu doutorado. Mas há uma mudança de comportamento visível. A garotada preferindo os blocos mais clandestinos, mais livres, com menos rigidez, menos horário, mais fluido, sem carro de som. Então, assim, há uma mudança de comportamento que está sendo que o Carnaval é um reflexo. Reflete essa mudança de comportamento social. Tem uma mudança derivada da pandemia que mudou muito a cabeça das pessoas, o sentimento e o lugar das pessoas no mundo e na cidade. E tem uma mudança geracional muito grande.
Qual é a expectativa de público para este ano?
A expectativa de público, pelo que a gente já vem observando, são blocos muito cheios. Na verdade, é uma rua muito cheia. Blocos cheios, grandes, mas também uma migração muito grande de um bloco para o outro, porque as redes sociais também têm ajudado muito nisso, que é correr daqui para lá e, assim, os blocos mais tradicionais e, principalmente os megablocos sempre inchados, mas a gente vê novos blocos surgindo e blocos independentes, que são os não oficiais. Então tem muito bloco novo surgindo nas vizinhanças, surgindo nos lugares. E isso está fazendo uma movimentação diferente. Não sei exatamente como vai ser em relação aos turistas, porque também está tudo muito caro, o Carnaval imediatamente depois do Réveillon e isso dificulta um pouco mais. Os fluxos e o gasto também. Eu imagino que a gente vai ter um Carnaval bastante cheio. É o que aponta.
Como está a atuação do poder público na organização para os desfiles dos blocos? Haverá algum reforço na segurança?
O poder público tentando correr e se organizar para poder tentar facilitar a vida dos blocos. A questão do banheiro ainda é complexa, muito complexa. Os bombeiros não têm uma normativa, uma lei ou uma norma adequada para blocos de rua. Então, fica tentando adaptar a nota técnica, a norma que existe de evento para bloco. Mas bloco não é evento, tem características diferentes, mas, por falta de outra lei, os bombeiros acabam aplicando essa. Então, fica como se fosse um quebra-cabeça. Uma peça de quebra-cabeça tentando ser encaixada num lugar que não é dela. Parece que é, mas não é. E, com isso, a gente ainda tem alguns problemas de entendimento dos técnicos dos bombeiros em relação a várias coisas. Mas, principalmente, algumas exigências que são consideradas inexequíveis, porque os blocos não conseguem realmente cumprir, como, por exemplo, a entrega de plantas de rua com indicação de saídas de emergência, de escape ou, muitas vezes, os próprios quartéis, onde estão os processos, os técnicos pedindo contrato de locação do bloco e não existe, porque a gente não aluga nada. Isso vale para eventos, não vale para bloco. No evento, você aluga um salão, um espaço, um clube, então tem realmente um contrato de locação. Mas um bloco de rua não contrata nenhuma locação, simplesmente vai para a rua. O nosso “contrato de locação” é com a própria Prefeitura quando a Riotur nos dá uma autorização prévia para desfilar, mas há técnicos nos bombeiros que não conseguem entender isso e a gente fica ali tentando explicar e não conseguindo avançar nas deliberações. Então, tem muitos aspectos normativos de burocracia que ainda são muito inadequados, principalmente no campo dos bombeiros. O segundo ponto é a questão da segurança, que a gente está vendo aí nas últimas notícias, muito roubo, muita gente comentando sobre uma violência exacerbada. Isso é um problema de segurança pública, não é um problema de Carnaval. A questão da insegurança está na cidade, fruto da desigualdade social, fruto de uma pandemia que aumentou essa desigualdade e as sequelas derivadas disso, com uma falta enorme de políticas públicas adequadas para poder levar jovens para escola, para longe do tráfico ou da bandidagem. Muitas vezes também falta políticas de emprego. Para quem já tem um pouco mais de idade, é um conjunto de desigualdades sociais, que leva a essa violência. A gente tem que contar muito com a ajuda da Polícia Militar, principalmente onde tem grandes aglomerações, e parece que a polícia está se organizando para isso, principalmente com a questão de reconhecimento facial. Só que tem que intensificar o policiamento em locais como o Aterro do Flamengo, Centro, Santa Teresa, Zona Sul, enfim, que são os locais de maior aglomeração e que são alvos prioritários para os furtos, assaltos e outros crimes. Agora é contar com a ajuda. E vamos ver o que que vai dar.
O que tem achado da diversidade musical dos blocos, que não apresentam apenas samba?
Acho bom, eu gosto. Acho que tem que ser plural. No Carnaval, cabe tudo. Não é à toa que os blocos temáticos fazem o maior sucesso. Carnaval é isso. A pluralidade, a diversidade. Eu gosto de bloco de samba, mas eu gosto de blocos de outros ritmos também. É a escolha pessoal de cada um.
Como a crise climática, as altas temperaturas do verão, podem impactar o Carnaval de rua nos próximos anos? Que providências podem ser tomadas?
A crise climática já está afetando o Carnaval, já está causando impacto. Se continuar nessas temperaturas tão altas como a gente tem experimentado, com uma sensação térmica às vezes de 50ºC a 60ºC, tenho medo dessa garotada que sai muito cedo, começa a beber muito cedo, se expõe muito, não se cuida, não se hidrata. Tenho muito medo dessa questão da saúde. O único jeito da gente se precaver seria a gente mudar um pouco os horários de desfile, saindo mais cedo, procurando sair nos horários mais da manhã, ou então mais do finalzinho da tarde, mas que traz uma questão de aspecto de segurança. E hidratar muito o público com medidas como a contratação de carros-pipa, que é o Imprensa Que Eu Gamo, inclusive, vai fazer, o Barba já faz, já é tradicional. Eu acho que outros blocos também vêm com essa ideia. E contar com a população com mangueiras, ajudando a hidratar o folião. Muitas campanhas para que as pessoas se hidratem de verdade, procurem evitar os horários de pico e, no mais, é o cuidado com ações climáticas. E aí não depende do Carnaval. Depende muito mais da sociedade, do comércio, da indústria, das políticas nacionais e internacionais.
Qual sua opinião sobre apresentação de blocos de rua em outras épocas do ano?
Blocos de rua em outras épocas do ano, a gente já viu que não funciona muito. Quer dizer, têm alguns desses mais independentes, da garotada mais jovem, que a gente tem visto fora de época. Eles têm funcionado, mas, principalmente, como pautas, como ações relâmpago, como festas. Os blocos chamados de oficiais, organizados com trio elétrico, não têm grande apelo para esse tipo de Carnaval fora de época. Aqui no Rio de Janeiro, pelo menos não. Para um formato de Carnaval que é mais fluido, que vai costurando mais a rua, parece que tem funcionado melhor e com uma geração mais jovem, mais nova, que tem experimentado essa cidade. Quando você pensa em blocos com uma organização maior, no sentido de ter carro de som, de ter todo o aparato, além de ser muito caro, têm um impacto muito grande também na cidade e parece que não têm muita adesão do público. Então, é um formato de Carnaval que nunca rolou muito de acontecer no Rio de Janeiro com muito sucesso. Mas o Rio tem uma tradição de eventos de rua, como rodas de samba, rodas de choro, feiras e outros eventos. Eu fico pensando que tem tanta coisa para acontecer ao longo do ano que eu não sei se eu acho que Carnaval exatamente deva ser fora de época, porque o Carnaval traz uma mágica com ele. Ele tem um ritual, um momento em que ele acontece, que a gente se prepara. Eu acho que essas coisas ritualizadas, quando você tira elas do contexto, você banaliza como tantas outras que estão banalizadas. Então, eu prefiro os rituais como eles são, com a sua mágica, com o envolvimento que a gente vai tendo e crescendo, e depois dissolvendo. Então, eu acho que um Carnaval permanente eu, sinceramente, perco um pouco da mística desse Carnaval e do ânimo que eu tenho em relação a Carnaval. Prefiro ir para rodas de samba e outros eventos.
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