Publicado 18/08/2025 05:00
Luciene Carris é gerente do Centro de Ensino e Pesquisa do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Historiadora e pesquisadora com Mestrado e Doutorado em História Política, é sócia efetiva do Instituto Histórico e Geográfico do Rio (IHGRJ) e sócia honorária do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Entre os vários livros que escreveu estão "Intelectuais, militares, instituições na configuração das fronteiras brasileiras (1883-1903)" e "Histórias do Jardim Botânico: um recanto proletário na zona sul carioca (1884-1962)".
PublicidadeSIDNEY: A senhora escreveu um livro sobre o bairro Jardim Botânico, que abriga a mais importante coleção vegetal do Brasil. O que os brasileiros e cariocas não sabem sobre o lugar?
LUCIENE CARRIS: No livro "Histórias do Jardim Botânico", busquei evidenciar o passado operário do bairro, que originalmente pertencia à Gávea. No final do século 19, diversas fábricas se instalaram ali, como a Companhia de Fiação e Tecelagem Carioca, adquirida pela América Fabril na década de 1920, além da Companhia de Fiação e Tecidos Corcovado, instalada na rua Jardim Botânico, nas proximidades do Parque Lage até o Hospital da Lagoa. Podemos encontrar resquícios desse passado operário no conjunto arquitetônico em estilo eclético na rua Pacheco Leão, antiga vila operária dos trabalhadores das fábricas, que tem sido atualmente tomado por restaurantes. Devido às constantes greves e à forte atuação de movimentos anarquistas e, depois, comunistas, a região ganhou o apelido de “Gávea Vermelha”. Muitos eventos centrais da história da cidade como a Revolta da Vacina, ocorrida em novembro de 1904, contaram com os operários da área que se juntaram aos protestos na região da Saúde contra a vacinação obrigatória, e até bondes da Companhia Carris Jardim Botânico foram depredados. O bairro também tem uma ligação antiga com o Carnaval, desde o final do século 19. Uma figura de destaque foi Haroldo Lobo, de família operária, falecido em 1965, autor de "Alá-lá-ô", "Tristeza" e "Índio quer apito", responsável pelo Bloco da Bicharada. Depois vieram outros blocos como "O Vagalume O Verde", com ligações com o Horto e descendentes dos trabalhadores da fábrica. Consegui, junto à prefeitura, depois de um processo, aprovar a colocação de uma placa em homenagem à Haroldo Lobo, mas a instalação ainda depende da aprovação dos atuais moradores. Além das histórias de lutas e reivindicações, há também curiosidades descobertas ao longo da pesquisa. Na região, ocorriam os treinos do Carioca Football Club, que pertencia à fábrica. Atualmente, a sede do clube funciona na Rua Jardim Botânico. Um esporte curioso, o autobol, o futebol de carros, ocorria no Clube Caxinguelê no início de 1970. Mas existem muitas outras histórias a serem reveladas e continuo descobrindo novas até hoje.
No livro organizado com Andrea Casa Nova Maia, "Constelações Urbanas", a proposta é "ver a cidade como um mosaico de tempos e espaços que se sobrepõem". O que significa isso?
O livro foi organizado por mim e por Andrea Casa Nova Maia com textos dos alunos de do Programa de Pós-Graduação em História da UFRJ. A nossa intenção é pensar a cidade não como um objeto fixo e uniforme, mas como um processo em que diferentes temporalidades, memórias, identidades e formas de uso coexistem e se interpenetram. A inspiração partiu do filósofo alemão Walter Benjamin e pela sua noção de “constelação” para pensar a cidade a partir de fragmentos, das diferenças e das relações sem um centro único. Para ele, a cidade seria um conjunto de narrativas sobrepostas: ruínas e construções novas, memórias preservadas e apagamentos. É um olhar que busca romper com visões homogêneas ou lineares da história urbana, que reconhece a complexidade e a disputa constante pelo direito de habitar, de lembrar e de transformar o espaço urbano.
Para alguns, a demolição do Morro do Castelo, no centro da cidade, simbolizou um momento-chave da modernidade carioca. Para outros, foi um erro. Quem tem razão? Valeu a pena?
A demolição do Morro do Castelo na administração do prefeito Carlos Sampaio dividiu opiniões. Uma parcela da sociedade defendia que era um obstáculo para a circulação do ar, o que causava inúmeras doenças que atingiam a população, além de ser um obstáculo à expansão e ao trânsito. De fato, a sua remoção abriu espaço para abertura de avenidas como a Avenida Presidente Antonio Carlos, de ruas, de praças e para a Exposição Internacional do Centenário da Independência de 1922. Por outro lado, críticos, como Lima Barreto, questionaram a perda do patrimônio histórico e de sua importância para a história da cidade, já que no morro havia construções coloniais e vestígios da fundação da cidade, que nasceu ali, onde efetivamente começou a se desenvolver, sem falar da expulsão de cerca de 4 mil pessoas. Atualmente, há uma reflexão diferente, que não existia no início do século. A modernização urbana poderia ter integrado o morro e a sua história à cidade. Na época, porém, o desmonte foi celebrado como um marco da modernidade carioca. O debate permanece aberto até os dias atuais com alguma polêmica.
A sua biografia demonstra preocupação pela busca de democratizar o acesso à história. A do Rio de Janeiro que conhecemos é o olhar da elite ou tem a marca do sentimento do povão?
De fato, a historiografia mais tradicional sobre a cidade foi escrita por estudiosos ligados a determinados setores letrados e de maior poder econômico, que enaltecia grandes personagens e eventos, o que privilegiava o olhar da elite, muitas vezes distante da realidade das pessoas comuns. Contudo, novas pesquisas têm privilegiado outros temas como as festas de rua, as ocupações urbanas, a resistência popular, as manifestações religiosas e as expressões artísticas das periferias. Na minha trajetória, tenho me voltado para um campo da história chamado de História Pública, é uma forma de buscar democratizar o acesso ao conhecimento histórico, ultrapassando o ambiente acadêmico e universitário. Tenho desenvolvido isso através de blog, canal no Youtube, podcast e agora com "Um Jardim de Histórias" no Instagram, onde conto algumas histórias e curiosidades sobre o bairro do Jardim Botânico, onde moro. Com isso, busco apresentar uma história que tem a participação de pessoas comuns, que também constróem a identidade da cidade e do bairro.
Falemos agora da importância dos acervos públicos para a pesquisa e a memória da cidade: Parece que a senhora está convencida que a pesquisa acadêmica é um trabalho de detetive. Por quê?
O historiador francês Marc Bloch, considerado um dos maiores historiadores do século 20, comparou o ofício do historiador ao de um detetive. No nosso caso, implica em investigar pistas, documentos e cruzar informações tal como um investigador, com o objetivo de compreender e reconstruir um acontecimento. No caso dos acervos públicos, por exemplo, o Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, onde atualmente trabalho, cumpre um papel fundamental ao gerir e preservar a documentação de valor permanente produzida pelo Poder Executivo municipal. Além disso, registra manifestações oficiais e não-oficiais, culturais, políticas e sociais, que são fundamentais para a memória da cidade, contribuindo para sua divulgação e preservação através de suas iniciativas. É a partir dessa documentação sob a sua guarda que podemos reconstituir acontecimentos, compreender contextos e revelar histórias que poderiam permanecer esquecidas sobre a história do Rio de Janeiro. Ao cuidar desses acervos, o Arquivo contribui para que as próximas gerações conheçam melhor a cidade de forma mais ampla, inclusiva e crítica.
O Rio de Janeiro é a cidade-referência do Brasil para o planeta. Ao mesmo tempo é uma cidade marcada pelo esquecimento, apagamento e a valorização de determinados temas da sua história. Por que isso acontece?
A imagem da cidade do Rio de Janeiro, uma vitrine no Brasil, é associada ao turismo e à sua vocação cultural, exaltada pela sua natureza exuberante, suas praias, pelo carnaval e pelo futebol, com interesse em projetar uma “boa imagem” para o exterior. Tradicionalmente, isso se relaciona a um jogo de interesses políticos e econômicos diversos que acabaram privilegiando certos aspectos da história do Rio de Janeiro, pois sabemos que a memória é seletiva. Nos últimos anos, no entanto, tem crescido o interesse em revelar e valorizar acontecimentos antes pouco lembrados, como o nosso passado escravocrata, integrando-os ao patrimônio e à vida cultural da cidade. Exemplos disso são a revitalização da Zona Portuária, a valorização do Cais do Valongo, as ações de preservação da Pequena África e o reconhecimento cultural da Praça Onze como “berço do samba”, que reuniu diferentes comunidades, como judeus, negros, ciganos e de tantos outros. Outro exemplo é o “Memorial das Mãos Negras que Edificaram o Jardim Botânico”, inaugurado em 2024, que é um gesto importante de reparação e de reconhecimento da história e da cultura afro-brasileira. Para que não se repitam apagamentos, esquecimentos e invisibilizações, é fundamental a participação atenta de toda a sociedade.
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