Colunista Rafael Nogueirareprodução
Publicado 01/02/2023 00:00
Não é nenhuma novidade que digo ao apontar que hoje, a troco de nada ou pouca coisa, as pessoas fiquem se xingando umas às outras de fascista. E principalmente na internet. Não tivesse ele também o seu quinhão de culpa pelo estado atual de coisas, Umberco Eco haveria de concordar comigo e parafrasear-se a si próprio ("A internet deu voz aos imbecis"). Mas não cito Umberto Eco aqui pela frase, que o fez ainda mais famoso do que era.
Falemos de seu livrinho “O Fascismo Eterno”, transcrição de uma conferência proferida em 1995, na Universidade de Columbia. A obra virou paradigma – quem incorre em um ou mais dos 14 pecados de sua lista, é um forte candidato a fascista para o leitor. E também para quem não leu, mas ouviu falar de longe, talvez pela internet.
Para Umberto Eco, fascismo não é uma filosofia: suas características, às vezes, são contraditórias entre si. É uma retórica. Eis o primeiro problema do texto. Não me causou boa impressão combater retórica com retórica. As explicações de Eco são tão resumidas, que é fácil se confundir. Seu apelo emocionado à ação motiva o excitado da vez a perder a mão e errar. O mau leitor sai com a ideia superficial de “dizem que Hitler bebia água todo dia; então melhor evitar”.
Proponho alguns cuidados. Identificar tradição e fascismo é condenar todo e qualquer religioso. Não me parece um bom caminho, e acredito que não foi isso que o autor quis defender. A apologia irrestrita à modernidade desconsidera que o fenômeno é fruto da mesma modernidade, ainda que se coloque como reação a ela. E o nacionalismo não precisa sempre de inimigos – identidades e memórias coletivas podem conviver com a diversidade, com outras nacionalidades e etnias, em clima de respeito, paz e mútua admiração.
Eco vê perigo nos ressentimentos sociais, mas omite que o ódio ao rico e ao poderoso é alimentado sobretudo pelas esquerdas. Seu alerta quanto aos riscos da novilíngua mereceria atualização – a falsa devoção à democracia, usada como palavra fácil contra si mesma, esconde a tirania, e a linguagem neutra, a pretexto de incluir, em simbólica queima de livros, exclui literaturas inteiras.
Os itens que falam da recusa à crítica e do anti-intelectualismo não parecem deixar brecha para a crítica aos intelectuais. No Brasil, parte considerável da intelectualidade é servidora pública – será que ela não pode receber críticas com a serenidade de quem sabe que nisto consiste a vida democrática? E não seria anti-intelectual abandonar o saber pelo saber em proveito de um ensino para a práxis, para a ação, de que seu discurso é exemplo?
Estamos de acordo que “o povo” não se encarna perfeitamente em um líder, mas isso também não acontece com o parlamento. A canalização da vontade popular depende do grau de formação do eleitorado, da consciência daquilo que lhe falta e que o estado lhe deve; depende da honestidade dos eleitos; depende do sistema, que tende a ser falho, como vemos em nosso congresso, que convive serenamente com a realidade de que alguns estados são sub-representados. Tensões acumuladas às vezes escoam pela voz do líder, candidato à chefia do executivo.
A frieza científica do ensaio é aparente; ele é um convite à ação. Que plateia juvenil age com maturidade quando tem em mãos uma lista, feita por um sábio, para identificar no colega um perigoso fascista? Não será esta uma veste inocente ao novo fascismo?
Rafael Nogueira é professor de História e Filosofia, ex-secretário nacional de Cultura e ex-presidente da Biblioteca Nacional
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