Publicado 22/03/2023 06:00
Semana passada, eu estava sentado à primeira fila de um auditório para acompanhar um espetáculo. O ambiente escuro, uma ou outra tosse ao fundo, plateia cheia, uma ansiedade respeitosa e muda. Antes da apresentação, uma menininha vem ao meio do palco. Bracinhos em torno do microfone, as sapatilhas juntas, começa a contar um pouco de sua história. Nasceu no Rio de Janeiro, no morro do Alemão. Sua família não teve muitas oportunidades. Mas gostava de dançar. Queria dançar. Precisava dançar. E, admitida naquela casa, vinha enfim agradecer ao Ballet Bolshoi no Brasil por ter mudado a sua vida.
Naquele dia a Escola do Teatro Bolshoi comemorava seus 23 anos no Brasil. Única filial fora da Rússia do prestigiado Ballet de Moscou, que existe desde 1773, a nossa fica aqui em Joinville, Santa Catarina. E o lugar é uma verdadeira joia, uma assombrosa reunião de talentos. Capaz de apurá-los pelo estímulo saudável à competição, ao desenvolvimento de capacidades e à busca por ser o melhor naquilo a que se propõe: a dança.
Os resultados são um orgulho. O Bolshoi não é um programa social, não foi feito para ser. E, no entanto, muda inúmeras realidades, sobretudo a dos mais pobres, favorecidos na escolha, por meio da disciplina, do comprometimento e de devoção à arte. Lá chegam crianças de todo o Brasil e de saem de lá, reconhecidamente, alguns dos maiores bailarinos do mundo.
Também fez anos, nos últimos dias, o poeta Cruz e Sousa; no seu caso não do nascimento, e sim da morte. Há 125 anos lhe veio aquele “olhar ansioso, aflito dos que morrem”. Foi esse poeta, como tantos, um talento póstumo. Alguém cuja vida floresceu na morte e cujo reconhecimento veio quando enfim nossa literatura, às vezes tão míope diante dos que mais a engrandecem, pôde enfim assimilá-lo ao cânone como um dos maiores poetas que o Brasil já legou ao mundo.
Catarinense, Cruz e Sousa é o orgulho maior das letras do estado. Mas nem por isso seria justo que de fora o limitassem, para rebaixá-lo, só a circunstâncias regionais, como se pouco dissesse ao resto do país. Foi nisso muito injustiçado. Em Desterro, atual Florianópolis, o poeta nasceu, cresceu e se letrou. Sua vocação foi porém sempre universal.
Sensível, dotado de uma alma “doce e triste e palpitante”, ele falava das dores mais finas e dos dramas mais humanos. Sua poesia era como a do próprio Baudelaire, que o inspirou: um longo grito pela libertação do espírito, um sublime “De Profundis” pelo que almejava um andar mais puro de opressões e sofrimentos “mais junto à Natureza e mais seguro de seu Amor”.
Cruz e Sousa também é lembrado como o Dante Negro. E num certo sentido foi mesmo como o autor da Divina Comédia: um cavador do trágico infinito. Pode não ter escrito uma epopeia, ou um longo poema dramático, mas pela precisão de seu verso e pela pungência de sua lírica, conseguiu desencavar, do fundo da história brasileira, o posto de honra que em vida lhe negaram. E que dele hoje ninguém mais tira.
Rafael Nogueira é professor de História, presidente da Fundação Catarinense de Cultura e ex-presidente da Biblioteca Nacional
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