RAFAEL NOGUEIRA NOVADIVULGAÇÃO
Publicado 18/09/2024 00:00

A série "Xógum — A Saga Gloriosa do Japão", uma das maiores produções históricas dos últimos anos, alcançou o prestigiado Emmy de Melhor Drama, em reconhecimento tanto à sua relevância artística quanto à profundidade de sua narrativa.
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Situada no Japão do último ano do século XV, a trama se desenrola com as complexas interações políticas e culturais de uma época marcada pela transição para a modernidade, e pelo choque entre ocidente e oriente, cujos conflitos internos se mesclavam de variadas formas.
Em sua estreia, a série já conquistou 18 prêmios, um recorde para uma única temporada de drama, superando John Adams, recordista que mantinha o título desde 2008, com 13. São destaques os atores Hiroyuki Sanada e Anna Sawai, os primeiros japoneses a vencer suas respectivas categorias.
O aclamado O Último Samurai, estrelado por Tom Cruise, não por coincidência guarda semelhanças com a série — o filme se inspirou em partes do livro de James Clavell, que serviu de base para a série. A presença de um ocidental entre os samurais, que se torna um deles, é um tema comum. Uma das cenas mais icônicas – a decapitação presenciada pelo estrangeiro durante um ritual de seppuku – revela o choque cultural e o ritualismo da sociedade japonesa, tal como a série traz à tona com precisão histórica.
Apesar de tudo, um detalhe me incomodou: a grande nação ocidental retratada na trama é Portugal, mas ouvimos sempre inglês em vez do português. Embora alguns possam considerar essa crítica um preciosismo, é justo imaginar que, assim como fizeram questão de selecionar atores japoneses para os papéis nipônicos, poderiam ter oferecido mais autenticidade com atores que falam a língua portuguesa. Mel Gibson, certamente, teria feito jus à língua de Camões.
Outro ponto curioso é que, apesar da ambientação histórica japonesa, as filmagens não ocorreram no Japão, mas em Vancouver, no Canadá, devido a questões tributárias e de saúde pública, já que a produção começou no final da pandemia de COVID-19. Mesmo assim, a série mantém uma precisão histórica que superou muitíssimo as críticas que a versão cinematográfica de 1980 enfrentou no Japão. A representação do figurino, dos palácios, dos rituais, dos costumes, da comida, tudo está muito bem feito. É uma verdadeira imersão no Japão de outrora.
O romance Xógum, lançado nos anos 70, é considerado um dos principais portais literários do Ocidente para o Japão, só superado pela tradução de Musashi. E, como em muitas grandes obras, há um toque autobiográfico. Clavell, que foi prisioneiro dos japoneses durante a Segunda Guerra Mundial, aprendeu a viver e a pensar como eles, experiência que influenciou sua escrita. O personagem Blackthorne, por sua vez, é inspirado em William Adams, um navegador inglês cujo navio holandês encalhou no Japão em 1600. Ele só escapou da morte ao associar-se aos japoneses e conquistar a confiança do xogum Tokugawa.
Além de Sanada e Sawai, outro nome que merece menção é Cosmo Jarvis, que atuou de maneira criativa, mas cativante. Ao menos para mim. Ele foi muito criticado, e nem foi cogitado para para ganhar prêmios, quase sempre pela falta de nuances, por não transitar bem entre o britânico cheio de artimanhas, e o líder insuspeito em terras inóspitas.
A série, enfim, com sua precisão histórica, narrativa sólida e atuações primorosas, é um retorno necessário ao diálogo entre culturas que moldaram e ainda moldam nosso mundo. É, ao mesmo tempo, uma viagem ao passado, e uma reflexão sobre como ocidente e oriente continuam a se influenciar mutuamente. E também sobre como os conflitos se misturam, indo muito além das divisões culturais e étnicas mais óbvias, com alianças entre diferentes e morticínios entre semelhantes. Que nos sirva de lição para, um dia, nossa arte cinematográfica refletir ao mundo o nosso interessantíssimo século XV.
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