Publicado 08/11/2024 00:00
Acompanhar o Enem ajuda a entender para onde estão conduzindo os jovens. A redação é central: tem um peso considerável, e serve para desempates. O tema de 2024 foi: “Desafios para a valorização da herança africana no Brasil”. Ótima proposta para aprofundar questões históricas e culturais importantes para o país. Mas a tradição da banca parece impedir que a inteligência floresça.
PublicidadeOficialmente, a prova avalia domínio da língua, compreensão do tema, argumentação sólida, repertório cultural, coesão textual e uma “proposta de intervenção”, quase sempre governamental, para solucionar o problema, respeitando sempre os direitos humanos. Não sei por que lembrei que, em sua época, o francês Joseph-Ignace Guillotin criou a guilhotina para que se pudesse matar sem o inconveniente da dor, fato saudado como avanço humanitário.
O tema do ano poderia nos remeter aos estudos sérios de Gilberto Freyre ou Alberto da Costa e Silva, que revelaram a presença africana em nossos costumes, língua e arte. Poderia, ainda, nos recordar que a África é um continente vasto, onde coexistem tradições majoritariamente cristãs e muçulmanas, além de civilizações ancestrais, que vão desde os faraós do Egito até as culturas berberes do Magrebe. Em uma análise madura, a questão de nossa herança africana revelaria o caráter multifacetado da contribuição africana ao Brasil.
Qualquer discussão sobre o assunto passa pela escravidão, maior chaga de nossa história. Quem foram, entre as vítimas, os protagonistas dessa luta? Quem se levantou por eles? José do Patrocínio, Joaquim Nabuco, Luís Gama, os irmãos Rebouças, José Bonifácio e princesa Isabel aparecem juntos nas páginas do livro da liberdade, assinado por figuras de diferentes origens e tons de pele.
Seria ótimo falar de Antonieta de Barros e Cruz e Sousa. Antonieta, primeira deputada negra do Brasil, foi uma católica conservadora que acreditava na educação como caminho para a emancipação humana. Ela criou o Dia do Professor, convencida de que o saber é o mais curto caminho para a liberdade. Cruz e Sousa, por sua vez, tornou-se o maior poeta do simbolismo nacional. Ambos eram catarinenses, fato que desconcerta aqueles que ainda veem o estado como ícone segregador.
A educação, como Antonieta via tão bem, deve primar pela autonomia de pensamento, o que me faz questionar se as convenções que tanto pretendem caracterizar o Enem têm mais valor educativo do que as liberdades intelectuais que a boa educação poderia oferecer.
Mas enfim: isso não vem ao caso agora. Prometi explicar como se tira nota mil, e meu espaço está acabando. Tome nota. Se o tema for “Dilemas da democracia estadunidense: quando um antidemocrático vence a eleição”, respire fundo, empunhe a caneta, e encarne o Che Guevara que vive no imaginário educacional brasileiro.
Faça quatro parágrafos, apresentando a ideia-central, dois argumentos, e uma conclusão. Pode começar citando um figurão.
De acordo com a filósofa Simone de Beauvoir, “a luta por uma sociedade justa começa com a desconstrução de desigualdades”. Quando candidatos antidemocratas alcançam o poder…
Complete explicando sua ideia-motor, que pode ser a de que a ameaça à democracia é a ameaça à igualdade. Depois, argumente:
Primeiramente, é fundamental reconhecer que o sistema eleitoral favorece candidatos que promovem valores ultrapassados, marginalizando minorias e promovendo a exclusão.
Primeiramente, é fundamental reconhecer que o sistema eleitoral favorece candidatos que promovem valores ultrapassados, marginalizando minorias e promovendo a exclusão.
E se o candidato indesejável tiver a maioria dos votos, inclusive de negros, latinos e mulheres? Basta citar Paulo Freire: “quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor.”
Em seguida, escolha novo argumento.
Em seguida, escolha novo argumento.
Além disso, a omissão da mídia permite que se corroam os pilares democráticos. Michelle Obama lembra que “não há espaço para líderes que constroem muros, quando o mundo precisa de pontes”, ideia que…
Você pode até defender a censura, mas não fale censura, fale em democracia. E arremate:
Portanto, urge uma reforma no sistema eleitoral e na mídia para promover pautas antifascistas. Nas palavras de Kamala Harris, “a democracia não é um direito dado, é uma luta contínua.”
Portanto, urge uma reforma no sistema eleitoral e na mídia para promover pautas antifascistas. Nas palavras de Kamala Harris, “a democracia não é um direito dado, é uma luta contínua.”
Chegou o momento da intervenção:
A Suprema Corte deve intervir para tornar inelegíveis candidatos que ameacem a democracia, e as escolas devem promover programas de conscientização.
A Suprema Corte deve intervir para tornar inelegíveis candidatos que ameacem a democracia, e as escolas devem promover programas de conscientização.
Feche com uma frase de efeito:
Só assim é possível assegurar uma democracia que garanta sempre presidentes autenticamente democratas.
Só assim é possível assegurar uma democracia que garanta sempre presidentes autenticamente democratas.
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