Amigos inseparaváveis! Gilson Peranzzetta e Eliana Peranzzetta com Leny AndradeArquivo pessoal
Publicado 19/09/2023 10:53 | Atualizado 19/09/2023 10:56
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Rio - A morte da cantora Leny Andrade, aos 80 anos, no último dia 24 de julho, deixou uma lacuna gigantesca na música popular brasileira e um imenso vazio na vida dos fãs, principalmente para um grupo que formava a LAL - Liga dos Amigos da Leny. Eles cuidaram da diva do jazz e da bossa nova até seus últimos dias de vida.
Os últimos meses da cantora, já debilitada por conta de uma doença degenerativa chamada distúrbio de cognição por Corpos de Lewy, que causa demência e outras complicações, não foram nada fáceis, mas os amigos "anjos", entre eles a produtora Eliana Peranzzetta, que passou a cuidar da carreira dela em 2018, e o maestro e pianista Gilson Peranzzetta, foram incansáveis e fizeram de tudo para amenizar o sofrimento da artista. Todo domingo o casal batia ponto no Retiro das Artistas, em Jacarepaguá, Zona Oeste do Rio, residência da cantora desde 2018 após deixar, por opção própria, um apartamento alugado em Botafogo, na Zona Sul.

No Retiro, a cantora vivia em uma casa confortável de dois quartos, quintal e varanda com suas duas cuidadoras, Valéria e Luciana, contratadas pelos amigos, que se revezavam nos cuidados com Leny, que tinha dificuldades de caminhar em função da artrose nos joelhos. Quando estava do lado de fora da casa, tinha um bom convívio com os moradores da instituição centenária, entre eles, o ator Paulo César Pereio e o compositor Sérgio Natureza.

"Ela nunca deixou de reconhecer os amigos, de lembrar das músicas, e a gente estimulava ela botando algumas. Em 2019, a gente viajou muito com ela, e o último show que ela fez foi no dia 12 de março de 2020. Ela fez show em São Paulo e no dia seguinte a gente quase não conseguiu voltar por Rio, porque fechou tudo por conta da pandemia", recorda Eliana.

Com o início do lockdown, o Retiro dos Artistas fechou as portas para visitas, o que deixou a artista bastante abalada, apesar de nunca ter lhe faltado o suporte dos funcionários do espaço e dos amigos, mesmo a distância durante esse período. "O Retiro foi espetacular. As pessoas têm uma falsa ideia de que quem vive lá fica em quartinhos confinados, não é verdade, é como se fosse um condomínio com casas pequenas. A da Leny era de muito conforto", conta Eliana.

Por causa dos esforços da LAL, formada por Cris Mascarenhas, Lais Pires, Zé Luiz Mazziotti, Fernanda Quinderé, Eliana Peranzzetta e Gilson Peranzzetta, Leny teve todo o conforto possível nos últimos anos de vida. Os amigos se uniam para realizar todos os desejos da diva da canção, inclusive o pedido dela de ter televisão no quarto e na sala, TV a cabo e acesso às redes sociais. Apesar de não publicar no Instagram e Facebook, Leny gostava que cuidadoras colocassem vídeos de músicas para ela assistir. A cantora teve, também, tratamento com fisioterapia, pilates e um médico particular pago pelos amigos.

"A gente ficou muito magoado porque tiveram pessoas dizendo que porque ela estava no Retiro, ela morreu sozinha. É mentira. Eu e Gilson estávamos no quarto com ela, a hora que ela morreu, com mais duas amigas de Curitiba. A Leny nunca padeceu de solidão, sempre fomos lá, a atendemos para tudo", garante Eliane.

"Eu e Gilson sempre fomos amigos. Quando nós vimos a situação dela, fizemos um pacto de que a gente nunca ia largar a mão dela. Na última vez que falei com ela, um dia antes de ela ser internada, eu disse para ela: 'Eu te amo muito e você sabe que não precisa se preocupar com nada porque você nunca vai passar nenhuma necessidade na sua vida. Nós estamos aqui para cuidar de você", relembra a produtora, emocionada.

Embora se alimentasse bem, cinco vezes por dia, Leny estava emagrecendo devido à doença e chegou a pesar 40 quilos, o que a deixou ainda mais debilitada. "O cérebro vai morrendo, vai encolhendo, com isso, as funções começam a falhar. A primeira internação dela foi uma broncoaspiração porque a parte muscular do pescoço começa a ficar fragilizada e engasga com a própria saliva. Ela ficou no CTI durante oito dias e a gente do lado dela. O pessoal do hospital ficava desesperado porque tinha horário e a gente burlava", detalha.

Quando recebeu alta e foi para casa, começou a fazer fisioterapia e fonoaudióloga e chegou a apresentar uma melhora, mas passou mal e precisou ser internada às pressas novamente. "Os médicos falaram que não podiam intubar porque o estado dela era crítico. Nós estávamos com ela no quarto, as amigas fizeram uma oração. Ela parou de respirar, e o sino da igreja começou a tocar poque eram 10h. Foi um negócio mágico, ela estava tão serena, tão em paz que isso é um consolo para a gente", revela Eliana.

Escritório favorito

Leny Andrade tinha um cantinho favorito, no Leme, Zona Sul, no qual costumava se reunir com amigos para celebrar a vida e tratar de assuntos profissionais

"Ela gostava da Fiorentina, ela chamava de escritório. Como ela adorava comer bem, todas as reuniões de negócios, comemorações, a gente dizia 'vamos para o escritório'. Ela sempre foi muito querida por todos, uma cantora generosíssima, ela ajudou vários músicos que estavam em uma situação mais complicada. Se ela soubesse que uma pessoa estava doente, ela se despencava para a casa dela. Tinham pessoas do exterior que quando viam ao Brasil, iam ao Retiro visitá-la", recorda a amiga e produtora.

E foi no tradicional espaço, inaugurado em 1957, que os amigos se reuniram para celebrar os 80 anos de Leny, em janeiro deste ano. "Ela chegou andando, mas depois desse aniversário, a doença começou a entrar num estágio mais rápido", lembra Eliana.

Três gravações inéditas

A cantora gravou três músicas que estavam sendo guardadas para o lançamento de um EP: "Por Causa de Você" (Tom Jobim/Dolores Duran), "Dindi" (Tom Jobim), gravada em parceria com João Senise, e "Cantor da Noite", de Ivan Lins e Vitor Martins, composta para ela cantar em 1984. "Eu a levei duas vezes para estúdio e estávamos tentando gravar um EP com as canções que ela mais gostava, e a gente conseguiu registrar três, mas ela já estava muito debilitadinha. Em 2022, a doença avançou e a última vez que ela entrou em estúdio foi em agosto de 2022 para gravar 'Por Causa de Você', e aí a gente avaliou que para fazer show não dava mais porque aí ela já esquecia uma letra, parava para tentar se situar, tinha pequenos lapsos de memória, mas a voz dela continuava tão vibrante quanto", recorda.

Leny morava em Nova York quando Antonio Carlos Jobim - o Tom Jobim - morreu, em dezembro de 1994, e foi convocada para cantar "Por Causa de Você" na missa de sétimo dia do cantor e compositor brasileiro que aconteceu nos Estados Unidos.

"Ela vai deixar esse legado da profissional, da cantora, da interpréte que fez da música brasileira a mais importante, como dizia. E o Tony Bennett era fã, todos os shows dela fora do Brasil, ele ia e ficava na plateia desenhando a Leny. Os grandes, os famosos também têm respeito no que toca a emoção, isso é muito importante", destaca Gilson. O cantor norte-americano Tony Bennett, que morreu no dia 21 de julho, aos 96 anos, prestigiava os shows de Leny em Nova York e costumava desenhá-la.

"Eu sempre falo para a rapaziada que está começando que a música é a minha religião, o palco é a igreja e o piano é o meu altar, onde humildemente faço as minhas orações e ela pensava igual. A Leny foi um marco na música brasileira, ela deixou a música brasileira no exterior na altura que merece. Tenho um respeito profissional grande por essa figura que foi a Leny", completa o pianista, arranjador e amigo de longa data, Gilson Peranzzzetta, que trabalhou com Leny desde 1989, no show "Cartola 80 anos".

Juntos eles fizeram ainda o álbum "Luz Negra - Nelson Cavaquinho por Leny Andrade", em 1995, "Canções de Cartola e Nelson Cavaquinho (2018) e o single "Por Causa de Você".

"O Brasil tem um esquecimento muito rápido. Na verdade, as pessoas só morrem quando você deixa de falar delas e eu nunca vou deixar de falar na Leny. Ela não vai morrer, ela vai ficar ali sempre, eterna, isso que importa", completa Gilson.

'Engraçada e desbocada'

Leny tinha um lado bem-humorado e descontraído que divertia os amigos próximos. "Ela era muito engraçada e desbocada, a gente brincava e falava: 'Leny, agora está ficando Dercy (Gonçalves)' porque ela falava muita bobagem", recorda Eliana.

"Ela falava muita bobagem, era muito legal, uma figura ímpar, era muito bom. Ela tirava aquele frio da barriga antes de subir ao palco para os shows com essas coisas bem humoradas nos bastidores", complementa Gilson.

O convívio com ela foi muito interessante, segundo ele, pois acrescentou na sua vida profissional. "A Leny, além de ser uma cantora, uma intérprete maravilhosa, na verdade, era um músico. Os scats que ela fazia, as improvisações eram coisas de músico, maravilhosas, então isso tudo foi acrescentando na minha vida musicalmente falando. Tinha uma coisa muito interessante é que ela valorizava muito os músicos, as pessoas que tocavam com ela. A estrela é a música, nós somos só instrumento e ela pensava da mesma maneira", conta o pianista.

"A Leny era a nota que faltava no meu acorde. No dia-a-dia fui aprendendo e vendo coisas muito interessantes, foi muito linda a nossa amizade", conclui.

Eliana define Leny Andrade como um vulcão. Ela também revela que pretende realizar um show em homenagem à amiga até o fim do ano "Ela era uma explosão de tudo, de afinação, ritmo, suíngue, uma coisa maravilhosa. Ela era muito generosa e muito engraçada, tinha tiradas maravilhosas, a gente vai sentir muita falta."
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