Real entrou em circulação no dia 1º de julho de 1994Reprodução
Publicado 01/07/2024 05:00 | Atualizado 01/07/2024 07:51
Crise econômica, inflação alta, desconfiança, falta de perspectiva... Todas essas expressões seriam justas para explicar o momento vivido pelo Brasil no início dos anos 1990. A solução encontrada foi a implementação de uma nova moeda, o Real, em 1º de julho de 1994, que comemora nesta segunda-feira 30 anos de sua criação. Mas até esse momento, muita coisa precisou ser feita.
Publicidade
Primeiro é preciso entender a conjuntura do país na última década do século passado. Desde a saída dos militares do governo, em 1985, a inflação era altíssima. Antes do Real, foram tentados outros planos econômicos para estancar a inflação: Cruzado 1 (fevereiro de 1986); Cruzado 2 (novembro de 1986); Bresser (junho de 1987); Verão (janeiro de 1989); Collor 1 (março de 1990) e Collor 2 (janeiro de 1991). No entanto, nenhuma teve sucesso.
Com o impeachment de Fernando Collor, Itamar Franco assumiu em dezembro de 1992 ainda com o mesmo problema para solucionar. O então presidente convidou Fernando Henrique Cardoso, que era ministro das Relações Exteriores, para comandar o Ministério da Fazenda. Este foi um dos principais responsáveis pela implementação do plano.
Depois de uma extensa negociação entre Executivo, Legislativo e Judiciário, o plano estava a um passo de sair do papel. Em recente entrevista ao Estadão, o então presidente do Banco Central, Gustavo Franco, contou que Fernando Henrique precisou pedir demissão em três oportunidades para que a ideia fosse adiante, na reunião feita em 28 de fevereiro de 1994, quando a Medida Provisória do plano foi assinada.
O protagonismo de Fernando Henrique Cardoso no plano rendeu holofotes ao político. Ele, que ocupava uma cadeira de senador por São Paulo, corria o risco não ser reeleito. Mas, depois do sucesso da nova moeda, FHC teve grande apoio popular, pavimentando o caminho para que ele se tornasse presidente do Brasil nos dois mandatos anteriores.
Fernando Henrique Cardoso ganhou muitos holofotes com a implementação do Real - Divulgação/PSDB
Fernando Henrique Cardoso ganhou muitos holofotes com a implementação do RealDivulgação/PSDB
O plano desenvolveu-se em três fases a partir do segundo semestre de 1993. Antes de a moeda entrar em circulação, houve um esforço de ajuste fiscal, com destaque para a criação do Fundo Social de Emergência (FSE), concebido para aumentar a arrecadação tributária e a flexibilidade da gestão orçamentária em 1994 e 1995.
A segunda etapa, iniciada com Medida Provisória 434, assinada pelo então presidente Itamar Franco em 27 de fevereiro de 1994, estabeleceu a utilização de uma moeda escritural, a Unidade Real de Valor (URV), que serviu como uma ponte para conversão monetária entre o Cruzeiro Real que deixaria de existir para o Real que entraria em circulação quatro meses depois.
Na última fase, iniciada em 1º de julho de 1994, finalmente nasceu o Real.
Especialistas apontam para sucesso
O DIA conversou com um time de economistas para debater a questão. Élcio Cordeiro da Silva, professor de economia da Anhanguera, acredita que o diferencial do Plano Real com relação aos outros planos econômicos foi a URV.
"No início, a cotação da URV em cruzeiros reais, que era a moeda vigente, era CR$ 647,50. Esse valor era utilizado pelo Banco Central para fixar a taxa de câmbio. Assim a URV tinha paridade com o dólar [1 URV = 1 dólar]. Essa paridade foi extremamente importante, pois a sociedade brasileira passara a contar com uma moeda 'parcial' que acompanhava às variações da moeda americana. Diante disso, os agentes econômicos passaram a adotar a URV de forma ampla e voluntária nas negociações de compra e venda. Apesar da cotação da URV em cruzeiros reais variar, os preços da economia, expressos em URV, estavam estáveis", citou.
Ele acredita que um erro em comum causou o fracasso das moedas anteriores. "Um ponto em destaque é o congelamento de preços, o que gerou desabastecimentos (falta de produtos), desequilíbrios financeiros para os produtores, uma vez que eles tinham que vender por preços abaixo do custo de produção. Esse fato agrava a crise econômica e gerava ainda mais desconfiança quanto ao sucesso do plano de estabilização", pontuou.
Já para Maria David, economista formada pela Universidade Católica do Chile, o principal diferencial do Plano Real foi a desindexação da inflação da economia popular.
"O principal passo vou desvincular a credibilidade da moeda do processo inflacionário. Para alcançar este propósito básico, tinha quebrar a indexação da moeda, ou seja a permanente incorporação da inflação ao processo monetário. A hiperinflação impedia qualquer possibilidade de desenvolvimento e mesmo de crescimento econômico sustentável", apontou.
Outro que destaca o sucesso da moeda é o professor de economia e coordenador da Fundação Getúlio Vargas, Mauro Rochlin, que ressalta que o Real conseguiu manter seu propósito, contendo a inflação.
"Que a moeda Real é um sucesso, é inegável. Ela é usada sem nenhum problema e a inflação não fez com que ela perdesse o sentido em suas dimensões. A gente não fala de R$ 1 milhão para comprar um pão, como era o caso do Cruzeiro. Sem controle inflacionário, é difícil pensar em crescimento a longo prazo", destacou.
Além disso, ele destaca uma experiência específica vivida pelos consumidores pré-Real. "Eles tinham que enfrentar filas imensas nos supermercados nos primeiros dias do mês. A população entendeu que diante de um cenário de alta inflação, o melhor negócio era comprar, trocar dinheiro por mercadoria o quanto antes", destacou.
Valor do Real mantém dimensões facilmente calculáveis para os consumidoresReprodução
Supermercados lotados
Para entender melhor como o processo inflacionário impactava a população, O DIA conversou com o executivo Gustavo Stutzel, que tinha 19 anos na época da implementação do Real. Ele contou que, por conta da inflação, os supermercados viviam lotados no início do mês.
"Não é exagero, as compras eram feitas todas no inícios do mês ou perto do dia 5, que era quando as empresas pagavam os salários. Por isso até hoje usamos esta expressão de 'compras do mês'", relatou.
O relato condiz totalmente com a explicação de MRochlin. O executivo também contou que, no início da implantação do URV, houve certa confusão por parte dos compradores, mas que depois de um tempo a população se acostumou.
"No início causava, sim, confusão, pois tudo deveria ser convertido de acordo com a tabela, então você tinha que ter isso em mãos. Depois, com o tempo, foi se popularizando e já não causava tanta confusão", lembrou.
O executivo Gustavo Stutzel lembra dos tempos pré-RealReprodução/Instagram
O que se comprava com R$ 1 quando a moeda foi implantada?
Naquela época, cada unidade da moeda era suficiente para comprar mais coisas do que hoje em dia. Com R$ 1 era possível adquirir 1 kg de frango, que hoje pode girar em torno de R$ 20. Naquele momento era possível levar para casa 10 pães franceses com R$ 1, enquanto hoje, a mesma quantidade sai por cerca de R$ 9, já que o preço do kg do pão gira em torno de R$ 18.
Já para abastecer o carro com gasolina, era necessário desembolsar R$ 0,55 por litro. Atualmente, o preço do combustível é pouco mais de 10 vezes este valor. Um dos itens mais comuns das cozinhas brasileiras, o pote de margarina Qualy podia ser comprado por R$ 1 e hoje custa entre 6 e 7 vezes mais.
Estes números, no entanto, não significam que havia um poder de compra maior há 30 anos. Na época, o primeiro salário mínimo foi de R$ 64,79. De acordo com um cálculo feito pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), o necessário para suprir as necessidades básicas de época era R$ 590,33, cerca de nove vezes mais.
Já em 2024, o salário mínimo é de R$ 1.412, enquanto o necessário apontado pelo Dieese é de R$ 6.946,37, quase cinco vezes mais. A melhor marca foi alcançada em janeiro de 2010, quando o salário mínimo era de R$ 510, e o considerado necessário na época era R$ 1.987,26, menos de quatro vezes superior.
Leia mais