Publicado 22/03/2023 11:25
Imagine combater um incêndio com imagens de satélite de dois meses atrás ou investigar a origem de uma queimada que só foi captada por essas imagens 20 dias depois de seu início. Foram as dificuldades no dia a dia dos órgãos que fiscalizam e combatem incêndios florestais no Brasil que impulsionaram o trabalho da meteorologista Renata Libonati, pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenadora do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (Lasa/UFRJ). Em vez de comparações de fotos com mais de um mês de diferença, o projeto criado por ela, a plataforma Alarmes, oferece atualizações diárias, calculadas por inteligência artificial por meio de fotos tiradas do espaço.
A professora da UFRJ foi homenageada pela empresa 3M como uma das oito mulheres brasileiras incluídas em uma lista de 25 pesquisadoras que estão mudando as áreas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática na América Latina. Docente e pesquisadora da instituição desde 2015, ela defende que a universidade pública não está descolada da realidade do país. Pelo contrário, seus pesquisadores estão buscando soluções para os problemas da sociedade.
“A gente estuda, pesquisa e forma pessoas para justamente tentar solucionar esses problemas nas mais variadas áreas exatas, áreas sociais, áreas de saúde, áreas biológicas. A ciência é muito útil e necessária para o desenvolvimento de qualquer país”, afirma ela, em entrevista à Agência Brasil.
Além de explicar o funcionamento de seu projeto, usado para combater os históricos incêndios do Pantanal em 2020, Renata Libonati conta na entrevista que vê avanços na participação das mulheres nas áreas de ciências exatas, mas defende que a paridade, em qualquer área, passa por reconhecer desigualdades estruturais que colocam a mulher em posição de desvantagem no mercado, e corrigi-las.
O monitoramento dos incêndios realizado no laboratório coordenado por ela se dá por meio do sistema Alarmes, que foi desenvolvido com recursos de um edital do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) de 2018. Desde 2020, porém, o trabalho conta apenas com o apoio de organizações não governamentais estrangeiras, a Wetlands International e o Greenpeace. A meteorologista considera bastante preocupante a falta de recursos públicos no projeto.
“O custo do laboratório tem duas vertentes: a primeira são os recursos humanos. O sistema não tem nenhum técnico da universidade trabalhando nisso. Sou eu, como professora, e uma dezena de pessoas trabalhando, alunos, com bolsas, para que mantenham o sistema. E todo esse monitoramento precisa de um aparato computacional muito grande que nós não temos. O que fazemos é alugar tempo e máquina na nuvem para que o sistema funcione. E não é barato processar dados do Brasil todo, todos os dias”.
O seu trabalho une imagens de satélite, focos de calor e inteligência artificial nesse modelo de monitoramento. De onde você partiu?
O satélite pode observar várias características dos incêndios florestais, e uma delas é a área que foi queimada. Até bem pouco tempo atrás, para obter informações sobre a área que foi perdida por um incêndio, nós tínhamos que esperar um mês, dois meses, para ter essa quantificação. Isso era um problema para os órgãos que lidam com a gestão do fogo no Brasil, porque a informação de quanto queimou em determinado evento é importante para a tomada de decisão durante a ocorrência. Se eu souber de forma rápida o quanto e onde já queimou durante um determinado evento, eu posso, por exemplo, colocar o meu contingente de combate posicionado em outro local, porque o fogo já não vai para a direção que ele já consumiu. E eu também posso fazer estudos de perícia para saber onde o incêndio começou sem ter que esperar muito tempo.
Então, foi algo pensado com base em um problema do dia a dia desse trabalho.
Em 2018, houve um edital inédito do CNPQ e do Prevfogo [Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais] para trazer as universidades e a academia para perto dos problemas que esse órgão precisava resolver. Fui contemplada com um projeto dentro deste edital, e foi aí que surgiu o sistema Alarmes, que nada mais é que um sistema de alerta rápido de informações das áreas afetadas pelo fogo. E o que significa rápido? Informações em tempo quase real. O satélite passa e, 12 horas depois, nós já temos todo o processamento feito, indicando as áreas que foram consumidas pelos incêndios. Isso foi possível através da junção de aprendizado de máquina profundo, da utilização de imagens de satélites da Nasa, os mais recentes lançados, com informações de focos de calor. Então, nós desenvolvemos um algoritmo com esse aprendizado de máquina que permite esse processamento, fornecendo informações todos os dias sobre o avanço dessas áreas.
Como esse sistema começou a ser utilizado?
No início, esse projeto foi desenvolvido com foco no Cerrado, porém, quando começaram aqueles incêndios em 2020, no Pantanal, nós rapidamente percebemos a necessidade de auxiliar com informações também para aquele bioma. Naquela altura, essas informações foram cruciais para a tomada de decisão durante aqueles eventos catastróficos, que acometeram quase um terço do bioma. Isso é muito superior à média que aquele bioma queima todos anos, que é aproximadamente apenas 8% de sua área. Havia a necessidade desse tipo de informação, e nós colocamos rapidamente à disposição.
“A gente estuda, pesquisa e forma pessoas para justamente tentar solucionar esses problemas nas mais variadas áreas exatas, áreas sociais, áreas de saúde, áreas biológicas. A ciência é muito útil e necessária para o desenvolvimento de qualquer país”, afirma ela, em entrevista à Agência Brasil.
Além de explicar o funcionamento de seu projeto, usado para combater os históricos incêndios do Pantanal em 2020, Renata Libonati conta na entrevista que vê avanços na participação das mulheres nas áreas de ciências exatas, mas defende que a paridade, em qualquer área, passa por reconhecer desigualdades estruturais que colocam a mulher em posição de desvantagem no mercado, e corrigi-las.
O monitoramento dos incêndios realizado no laboratório coordenado por ela se dá por meio do sistema Alarmes, que foi desenvolvido com recursos de um edital do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) de 2018. Desde 2020, porém, o trabalho conta apenas com o apoio de organizações não governamentais estrangeiras, a Wetlands International e o Greenpeace. A meteorologista considera bastante preocupante a falta de recursos públicos no projeto.
“O custo do laboratório tem duas vertentes: a primeira são os recursos humanos. O sistema não tem nenhum técnico da universidade trabalhando nisso. Sou eu, como professora, e uma dezena de pessoas trabalhando, alunos, com bolsas, para que mantenham o sistema. E todo esse monitoramento precisa de um aparato computacional muito grande que nós não temos. O que fazemos é alugar tempo e máquina na nuvem para que o sistema funcione. E não é barato processar dados do Brasil todo, todos os dias”.
O seu trabalho une imagens de satélite, focos de calor e inteligência artificial nesse modelo de monitoramento. De onde você partiu?
O satélite pode observar várias características dos incêndios florestais, e uma delas é a área que foi queimada. Até bem pouco tempo atrás, para obter informações sobre a área que foi perdida por um incêndio, nós tínhamos que esperar um mês, dois meses, para ter essa quantificação. Isso era um problema para os órgãos que lidam com a gestão do fogo no Brasil, porque a informação de quanto queimou em determinado evento é importante para a tomada de decisão durante a ocorrência. Se eu souber de forma rápida o quanto e onde já queimou durante um determinado evento, eu posso, por exemplo, colocar o meu contingente de combate posicionado em outro local, porque o fogo já não vai para a direção que ele já consumiu. E eu também posso fazer estudos de perícia para saber onde o incêndio começou sem ter que esperar muito tempo.
Então, foi algo pensado com base em um problema do dia a dia desse trabalho.
Em 2018, houve um edital inédito do CNPQ e do Prevfogo [Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais] para trazer as universidades e a academia para perto dos problemas que esse órgão precisava resolver. Fui contemplada com um projeto dentro deste edital, e foi aí que surgiu o sistema Alarmes, que nada mais é que um sistema de alerta rápido de informações das áreas afetadas pelo fogo. E o que significa rápido? Informações em tempo quase real. O satélite passa e, 12 horas depois, nós já temos todo o processamento feito, indicando as áreas que foram consumidas pelos incêndios. Isso foi possível através da junção de aprendizado de máquina profundo, da utilização de imagens de satélites da Nasa, os mais recentes lançados, com informações de focos de calor. Então, nós desenvolvemos um algoritmo com esse aprendizado de máquina que permite esse processamento, fornecendo informações todos os dias sobre o avanço dessas áreas.
Como esse sistema começou a ser utilizado?
No início, esse projeto foi desenvolvido com foco no Cerrado, porém, quando começaram aqueles incêndios em 2020, no Pantanal, nós rapidamente percebemos a necessidade de auxiliar com informações também para aquele bioma. Naquela altura, essas informações foram cruciais para a tomada de decisão durante aqueles eventos catastróficos, que acometeram quase um terço do bioma. Isso é muito superior à média que aquele bioma queima todos anos, que é aproximadamente apenas 8% de sua área. Havia a necessidade desse tipo de informação, e nós colocamos rapidamente à disposição.
E, a partir disso, as autoridades conseguiram otimizar os recursos?
Exatamente. Eles já não estavam mais trabalhando às escuras. Tinham uma informação atualizada diariamente sobre o avanço dos eventos de fogo e, assim, eles podiam planejar melhor os recursos e o pessoal e tomar as decisões cabíveis para combater os eventos que estavam ocorrendo. É possível, com esse sistema, também identificar não só de onde começou, mas todo o percurso que ele teve desde o seu início. Com informações atualizadas todos os dias, então, é possível fazer um histórico diário do comportamento do fogo, desde o seu início até o seu fim.
E esse sistema continua à disposição das autoridades para ajudar nas respostas aos incêndios e na identificação de responsáveis?
Desde 2020, essas informações são repassadas aos órgãos competentes de duas formas: nós disponibilizamos essas informações para que essas instituições utilizem nos próprios sistemas de informação. Além disso, nós desenvolvemos um site em que essas informações também são disseminadas para a sociedade de forma livre, o que também é uma questão interessante de se falar, porque, até o momento, a informação que a sociedade tinha sobre os eventos era em número de focos de calor, o que não é propriamente uma quantidade que todas as pessoas compreendem. O que significa um foco de calor, dois focos de calor ou 30 milhões de focos de calor? A partir do momento que nós trazemos a informação da área afetada, em quilômetros e em hectares, e em campos de futebol, isso agrega uma informação muito importante para a sociedade. Isso qualifica como a sociedade recebe a informação.
Que informações estão disponíveis?
Hoje em dia, a plataforma já atende toda Amazonia, todo o Pantanal e todo o Cerrado. Não só no contexto do bioma, mas ela traz informações em níveis mais abaixo, como níveis do município, das unidades de conservação e das terras indígenas. Isso basicamente é 75% do território brasileiro monitorado de forma diária, em todos esses locais, fornecendo essas informações em tempo quase real. Monitoramos também o pantanal binacional, com informações da Bolívia e do Paraguai.
As mudanças climáticas já têm impactado modelos de monitoramento de desastres naturais e previsão meteorológica?
Elas impactam esses modelos de previsão do tempo. Quando a gente está falando em mudanças climáticas, isso está associado ao aumento da temperatura média global. Só que esse aumento da temperatura média não vem sozinho. Os extremos e a variabilidade do clima também vão se alterando. A gente começa a ver que eventos que antes eram raros passam a ocorrer de forma mais frequente e duradoura, e isso gera uma diferença em relação ao que era conhecido. Quando você vai fazer uma previsão do tempo, para prever determinado evento, você vai precisar saber como ele se comportou no passado para entender os processos físicos e dinâmicos que levaram à ocorrência dele. Então, à medida que esses eventos começam a ter um comportamento diferente, eles vão ser mais difíceis de prever, até que a gente consiga entender como eles realmente estão acontecendo.
As mudanças climáticas podem causar mais incêndios no Brasil? O sistema já indica alguma mudança de comportamento?
Os incêndios na vegetação são resultado de três fatores: o clima, o tipo de vegetação e as atividades humanas naquela região. Você pode gerir essa vegetação, reduzindo a quantidade de material combustível em uma área. A ação humana também pode ser gerida no sentido de educar, fiscalizar e punir para que aquelas ignições não ocorram. Mas o clima a gente não vai conseguir gerir. Com o clima ficando cada vez mais favorável à ocorrência de incêndios, mais quente e mais seco, maior a probabilidade de eu ter mais incêndios. Por exemplo, o Cerrado está ficando mais quente e seco, e a mesma coisa com o Pantanal e na parte sul da Amazônia. Essas regiões vão ficar cada vez mais propensas a incêndios florestais, por isso, é primordial que o Brasil tenha uma política integrada voltada para a gestão da paisagem em relação ao fogo. E, em relação ao clima, precisamos trabalhar para que essa propensão ao aumento de condições climáticas favoráveis aos incêndios no futuro não se concretize, com políticas para diminuir o uso de combustíveis fósseis e o lançamento de gases do efeito estufa.
Entidades de defesa do meio ambiente, porém, denunciam que houve desmonte de políticas, leis e órgãos de fiscalização ambiental nos últimos anos, que causaram aumento do desmatamento. Você também viu isso no monitoramento dos incêndios durante o governo Bolsonaro?
Em relação aos incêndios florestais, percebemos que nos principais biomas brasileiros houve aumento nos últimos quatro anos, e isso é decorrente de vários fatores, como enfraquecimento dos órgãos de fiscalização e das leis ambientais, muito associados à política negacionista de mudanças climáticas. Foram quatro anos muito difíceis em termos ambientais, e o fogo é mais uma dessas variáveis em que a gente consegue quantificar o problema que a gente teve.
Como você vê o papel da educação pública na formação de mais mulheres cientistas?
Sem educação, não há progresso em nenhuma área de um país. A minha inserção na ciência veio de uma escola técnica federal, o Cefet, no Rio de Janeiro, em que pude aprender com os melhores professores e um ensino de qualidade. Acabei fazendo minha graduação fora, mas, desde 2015, sou professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e a gente tem sofrido também, nos últimos anos, o enfraquecimento da educação no país, e isso é tão preocupante quanto o enfraquecimento da questão ambiental. Sobre a parte das questões de gênero, realmente as ciências exatas não tem muitas mulheres, e isso ainda precisa mudar. A gente precisa de maior participação, porque, como esse prêmio mostra, é possível que mulheres tragam inovação, tecnologia e resolução de problemas na sociedade atual. E também mostra que a universidade pública trabalha para desenvolver soluções. Ela não se limita apenas a formar profissionais. Ela está focada nos grandes problemas da sociedade brasileira nesse momento.
Nessa fala, você se contrapõe a alguma ideia de que há esse descolamento entre universidade e sociedade? Como vencer essa ideia em um contexto de crescimento de vários negacionismos?
Nesse momento que a gente está passando da história, em que somos diariamente colocados em dúvida em relação ao que uma universidade faz, o que um cientista faz e o que ciência produz, é muito importante a gente divulgar o quanto é importante o trabalho de um cientista. A gente estuda, pesquisa e forma pessoas para justamente tentar solucionar esses problemas nas mais variadas áreas exatas, áreas sociais, áreas de saúde, áreas biológicas. A ciência é muito útil e necessária para o desenvolvimento de qualquer país.
Você hoje vê maior paridade de gênero hoje do que quando começou?
Acredito que estamos em um movimento ascendente de diminuir essa disparidade, mas a gente ainda está muito longe do ideal. Já vi muitas melhorias, como agências de fomento que já levam em consideração o tempo de licença maternidade e a quantidade de filhos que a mulher tem quando vai concorrer a um edital, levando em consideração o tempo de maternidade. Isso é muito importante porque, como eu falei, a ciência é muito dinâmica, e no pouco tempo que você fica parado, você já perde muito. Então, imagina uma mulher ficar um ano parada na licença maternidade, e é essencial, obviamente, que isso ocorra, e depois, ela tentar concorrer com uma pessoa que nunca parou. Isso já é levado em consideração em vários editais de várias agências de fomento. Inclusive o CNPQ, no Currículo Lattes, incluiu a opção das mulheres que são mães informarem isso para ser levado em consideração. Mas ainda existe muita coisa a ser feita para que esse tipo de barreira desapareça e possa haver uma equidade de gênero.
A gente ouve muito sobre a necessidade de incentivo às meninas entrarem na ciência, e sua resposta acrescenta um ponto que é a necessidade de permitir que elas continuem.
Exatamente. Eles já não estavam mais trabalhando às escuras. Tinham uma informação atualizada diariamente sobre o avanço dos eventos de fogo e, assim, eles podiam planejar melhor os recursos e o pessoal e tomar as decisões cabíveis para combater os eventos que estavam ocorrendo. É possível, com esse sistema, também identificar não só de onde começou, mas todo o percurso que ele teve desde o seu início. Com informações atualizadas todos os dias, então, é possível fazer um histórico diário do comportamento do fogo, desde o seu início até o seu fim.
E esse sistema continua à disposição das autoridades para ajudar nas respostas aos incêndios e na identificação de responsáveis?
Desde 2020, essas informações são repassadas aos órgãos competentes de duas formas: nós disponibilizamos essas informações para que essas instituições utilizem nos próprios sistemas de informação. Além disso, nós desenvolvemos um site em que essas informações também são disseminadas para a sociedade de forma livre, o que também é uma questão interessante de se falar, porque, até o momento, a informação que a sociedade tinha sobre os eventos era em número de focos de calor, o que não é propriamente uma quantidade que todas as pessoas compreendem. O que significa um foco de calor, dois focos de calor ou 30 milhões de focos de calor? A partir do momento que nós trazemos a informação da área afetada, em quilômetros e em hectares, e em campos de futebol, isso agrega uma informação muito importante para a sociedade. Isso qualifica como a sociedade recebe a informação.
Que informações estão disponíveis?
Hoje em dia, a plataforma já atende toda Amazonia, todo o Pantanal e todo o Cerrado. Não só no contexto do bioma, mas ela traz informações em níveis mais abaixo, como níveis do município, das unidades de conservação e das terras indígenas. Isso basicamente é 75% do território brasileiro monitorado de forma diária, em todos esses locais, fornecendo essas informações em tempo quase real. Monitoramos também o pantanal binacional, com informações da Bolívia e do Paraguai.
As mudanças climáticas já têm impactado modelos de monitoramento de desastres naturais e previsão meteorológica?
Elas impactam esses modelos de previsão do tempo. Quando a gente está falando em mudanças climáticas, isso está associado ao aumento da temperatura média global. Só que esse aumento da temperatura média não vem sozinho. Os extremos e a variabilidade do clima também vão se alterando. A gente começa a ver que eventos que antes eram raros passam a ocorrer de forma mais frequente e duradoura, e isso gera uma diferença em relação ao que era conhecido. Quando você vai fazer uma previsão do tempo, para prever determinado evento, você vai precisar saber como ele se comportou no passado para entender os processos físicos e dinâmicos que levaram à ocorrência dele. Então, à medida que esses eventos começam a ter um comportamento diferente, eles vão ser mais difíceis de prever, até que a gente consiga entender como eles realmente estão acontecendo.
As mudanças climáticas podem causar mais incêndios no Brasil? O sistema já indica alguma mudança de comportamento?
Os incêndios na vegetação são resultado de três fatores: o clima, o tipo de vegetação e as atividades humanas naquela região. Você pode gerir essa vegetação, reduzindo a quantidade de material combustível em uma área. A ação humana também pode ser gerida no sentido de educar, fiscalizar e punir para que aquelas ignições não ocorram. Mas o clima a gente não vai conseguir gerir. Com o clima ficando cada vez mais favorável à ocorrência de incêndios, mais quente e mais seco, maior a probabilidade de eu ter mais incêndios. Por exemplo, o Cerrado está ficando mais quente e seco, e a mesma coisa com o Pantanal e na parte sul da Amazônia. Essas regiões vão ficar cada vez mais propensas a incêndios florestais, por isso, é primordial que o Brasil tenha uma política integrada voltada para a gestão da paisagem em relação ao fogo. E, em relação ao clima, precisamos trabalhar para que essa propensão ao aumento de condições climáticas favoráveis aos incêndios no futuro não se concretize, com políticas para diminuir o uso de combustíveis fósseis e o lançamento de gases do efeito estufa.
Entidades de defesa do meio ambiente, porém, denunciam que houve desmonte de políticas, leis e órgãos de fiscalização ambiental nos últimos anos, que causaram aumento do desmatamento. Você também viu isso no monitoramento dos incêndios durante o governo Bolsonaro?
Em relação aos incêndios florestais, percebemos que nos principais biomas brasileiros houve aumento nos últimos quatro anos, e isso é decorrente de vários fatores, como enfraquecimento dos órgãos de fiscalização e das leis ambientais, muito associados à política negacionista de mudanças climáticas. Foram quatro anos muito difíceis em termos ambientais, e o fogo é mais uma dessas variáveis em que a gente consegue quantificar o problema que a gente teve.
Como você vê o papel da educação pública na formação de mais mulheres cientistas?
Sem educação, não há progresso em nenhuma área de um país. A minha inserção na ciência veio de uma escola técnica federal, o Cefet, no Rio de Janeiro, em que pude aprender com os melhores professores e um ensino de qualidade. Acabei fazendo minha graduação fora, mas, desde 2015, sou professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e a gente tem sofrido também, nos últimos anos, o enfraquecimento da educação no país, e isso é tão preocupante quanto o enfraquecimento da questão ambiental. Sobre a parte das questões de gênero, realmente as ciências exatas não tem muitas mulheres, e isso ainda precisa mudar. A gente precisa de maior participação, porque, como esse prêmio mostra, é possível que mulheres tragam inovação, tecnologia e resolução de problemas na sociedade atual. E também mostra que a universidade pública trabalha para desenvolver soluções. Ela não se limita apenas a formar profissionais. Ela está focada nos grandes problemas da sociedade brasileira nesse momento.
Nessa fala, você se contrapõe a alguma ideia de que há esse descolamento entre universidade e sociedade? Como vencer essa ideia em um contexto de crescimento de vários negacionismos?
Nesse momento que a gente está passando da história, em que somos diariamente colocados em dúvida em relação ao que uma universidade faz, o que um cientista faz e o que ciência produz, é muito importante a gente divulgar o quanto é importante o trabalho de um cientista. A gente estuda, pesquisa e forma pessoas para justamente tentar solucionar esses problemas nas mais variadas áreas exatas, áreas sociais, áreas de saúde, áreas biológicas. A ciência é muito útil e necessária para o desenvolvimento de qualquer país.
Você hoje vê maior paridade de gênero hoje do que quando começou?
Acredito que estamos em um movimento ascendente de diminuir essa disparidade, mas a gente ainda está muito longe do ideal. Já vi muitas melhorias, como agências de fomento que já levam em consideração o tempo de licença maternidade e a quantidade de filhos que a mulher tem quando vai concorrer a um edital, levando em consideração o tempo de maternidade. Isso é muito importante porque, como eu falei, a ciência é muito dinâmica, e no pouco tempo que você fica parado, você já perde muito. Então, imagina uma mulher ficar um ano parada na licença maternidade, e é essencial, obviamente, que isso ocorra, e depois, ela tentar concorrer com uma pessoa que nunca parou. Isso já é levado em consideração em vários editais de várias agências de fomento. Inclusive o CNPQ, no Currículo Lattes, incluiu a opção das mulheres que são mães informarem isso para ser levado em consideração. Mas ainda existe muita coisa a ser feita para que esse tipo de barreira desapareça e possa haver uma equidade de gênero.
A gente ouve muito sobre a necessidade de incentivo às meninas entrarem na ciência, e sua resposta acrescenta um ponto que é a necessidade de permitir que elas continuem.
Isso, na verdade, está muito ligado, porque a gente vem de uma cultura patriarcal em que a mulher não era muito incentivada a estudar, é incentivada mais para a maternidade. Então, isso é um processo muito longo e difícil de ser quebrado de uma hora para outra. Aí entram todos esses movimentos, não só de apoiar as mulheres que já estão, mas também de incentivar aquelas que não estão a entrar e dar continuidade à carreira delas.
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