Imagem computadorizada do coronavírusReprodução
Publicado 03/09/2024 14:51
Brasília - Vídeo mente ao usar dados de estudo estrangeiro para afirmar que pessoas vacinadas teriam o dobro de chance de pegar covid-19 em relação a não vacinadas. Na realidade, o estudo citado aponta apenas que a eficácia dos imunizantes contra covid diminui com passar do tempo, ao comprovar que idosos da Europa com mais de 60 anos, vacinados há mais de 6 meses, manifestaram redução da eficácia da vacina. A pesquisa também ressalta a necessidade de monitoramento de novas variantes da covid-19 para atualizações de vacinas.
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Conteúdo investigado: Autor de vídeo usa estudo publicado em periódico médico estrangeiro para afirmar que vacinas contra covid-19 teriam "eficácia negativa comprovada". Ele alega que pessoas vacinadas tiveram o dobro de chance de pegar covid-19 em relação às não vacinadas.

Onde foi publicado: X e site de internet.

Conclusão do Comprova: É falso o conteúdo de um vídeo que contesta a eficácia da vacina contra a covid-19 ao afirmar que pessoas imunizadas têm o dobro de chance de pegar a doença em comparação aos que não receberam a proteção. A declaração inventa dados e os atribui ao estudo intitulado “COVID-19 Vaccine Effectiveness in Autumn and Winter 2022 to 2023 Among Older Europeans”, (“Eficácia da Vacina contra Covid-19 em Idosos Europeus entre o Outono de 2022 e o Inverno de 2023”, em português).

O estudo foi elaborado por uma equipe de pesquisadores liderada pela francesa Charlotte Laniece Delaunay, do Departamento de Epidemiologia da empresa Epiconcept, e publicado no JAMA Network Open, a plataforma on-line de colaboração aberta do periódico americano Journal of the American Medical Association (JAMA), em julho de 2024. O JAMA é publicado pela American Medical Association (Associação Médica Americana), maior associação de médicos e estudantes de medicina dos Estados Unidos, desde 1883.

As afirmações falsas, publicadas no X, baseiam-se em um texto do site Médicos pela Vida, formado por um grupo de médicos que já foi condenado por fazer propaganda pró-cloroquina. O Comprova já publicou outras checagens relacionadas a conteúdos divulgados pelo grupo, como esta que concluiu ser enganoso que um estudo de Harvard tenha confirmado a eficácia da hidroxicloroquina na prevenção da covid-19.

Conforme apontam os especialistas ouvidos pelo Comprova, o texto do site distorce dados do estudo publicado no JAMA – a ideia de "eficácia negativa" jamais é citada no estudo original –, além de incluir informações que sequer fazem parte da pesquisa, como um gráfico a respeito da eficácia das vacinas contra a variante Omicron, que foi traduzido de maneira enganosa.

Diferentemente do que alegam os responsáveis pelo conteúdo investigado, o estudo não afirma que as vacinas tenham eficácia negativa, mas sim que a efetividade delas após a aplicação diminui com o tempo, como já era previsto. Na verdade, a pesquisa destaca que as vacinas são mais eficazes em até 180 dias. Além disso, enfatiza a importância de os órgãos de saúde estarem atentos para disponibilizar vacinas atualizadas para novas variantes do vírus.

O Comprova procurou o responsável pela publicação e pelo site, mas não houve retorno de ambos.

Falso, para o Comprova, é o conteúdo inventado ou que tenha sofrido edições para mudar o seu significado original e divulgado de modo deliberado para espalhar uma falsidade.

Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. O conteúdo foi publicado no X, onde alcançou mais de 24,1 mil visualizações até o dia 27 de agosto. A mesma postagem foi feita no Instagram em 22 de agosto e, até 2 de setembro, já acumulava 12,4 mil compartilhamentos.

Fontes que consultamos: Lemos na íntegra o estudo mencionado nas postagens e constatamos que as informações disseminadas eram falsas, pois tiravam o estudo de contexto e incluíam dados inexistentes. Para confirmar nossa análise, consultamos dois especialistas em infectologia e o Ministério da Saúde, que corroboraram nossas conclusões. Além disso, pesquisamos o histórico e entramos em contato com o Médicos pela Vida e o perfil Estúdio 5º Elemento. Ambos já tiveram anteriormente conteúdos desmentidos por iniciativas de checagem.

Eficácia da vacina
Conforme o infectologista da Fiocruz Amazônia, Marcus Lacerda, em nenhum momento a pesquisa divulgada pelo Médicos pela Vida cita ou aborda a comprovação da chamada "eficácia negativa" da vacina contra a covid-19.

Na verdade, a pesquisa usada no vídeo aponta que o imunizante funciona melhor até 180 dias após a aplicação. Após esse período, a efetividade da vacina é reduzida. Apesar da diminuição, ela não perde a eficácia, muito menos teria a capacidade de tornar as pessoas vacinadas mais suscetíveis a adquirir a doença em relação às pessoas não vacinadas, como afirmam o autor do vídeo e o Médicos pela Vida.

Lacerda ressalta que a redução da efetividade da vacina indica a necessidade de reforço de doses do imunizante e, principalmente, a importância do monitoramento de novas variantes para a atualização de vacinas.

Ainda segundo o infectologista, o estudo compara uma vacina feita contra um tipo circulante e a eficácia dela com outro vírus Sars-Cov-2. "Isso [aparição de novas variantes] diminui também a eficácia", afirmou ele.

"Então, o que o artigo está chamando atenção é que às vezes você tem que monitorar o tipo de vírus que está circulando para poder fazer atualização da vacina, porque depois de 180 dias ela funciona pior para as novas variantes, mas não quer dizer que não funciona", afirma.

O Comprova também conversou com o infectologista e pesquisador da Fiocruz Julio Croda. Segundo ele, as publicações checadas mentem ao tirar de contexto os dados do estudo para sugerir que a vacina perde eficácia completamente com o tempo ou, em alguns casos, que ela chegaria a ter uma proteção "negativa".

"Esse estudo não traz nada diferente do que a gente já sabe: a perda de proteção ao longo do tempo. A Organização Mundial de Saúde e o próprio Ministério da Saúde já recomendam, para alguns grupos vulneráveis, duas doses de vacina para que seja garantida a proteção mais duradoura", afirma.

Comprovadamente seguras
Em nota enviada ao Comprova, o Ministério da Saúde afirmou que as vacinas contra a covid-19 são comprovadamente seguras e eficazes, desenvolvidas para reduzir hospitalizações e mortes causadas pela doença, que resultou em uma crise global de saúde pública. "A vacinação em massa foi crucial para controlar a pandemia, reduzindo significativamente a morbimortalidade associada à doença", destacou.

Segundo a pasta, a covid-19 continua sendo uma das principais causas de mortalidade por doenças infecciosas no Brasil, com cerca de 69 óbitos semanais, principalmente entre não vacinados ou aqueles com esquema vacinal incompleto ou atrasado, incluindo crianças.

"A redução dos casos graves e óbitos em comparação aos primeiros anos da pandemia é um reflexo direto de uma campanha de vacinação eficaz. É importante esclarecer que o estudo de Delaunay et al. (2024), citado na demanda do veículo, avaliou a eficácia das vacinas contra a covid-19 na prevenção de infecções sintomáticas em pessoas com 60 anos ou mais, atendidas em serviços de saúde primária na Europa durante o outono e inverno de 2022 e 2023. Os resultados reforçam evidências de pesquisas anteriores e validam a estratégia atual do Ministério da Saúde, que inclui vacinação anual ou semestral para grupos prioritários e a conclusão do esquema vacinal primário para crianças", acrescentou o Ministério da Saúde.

O Comprova entrou em contato com o site Médicos Pela Vida e a página 5º Elemento, mas não houve retorno.

Responsáveis pelas publicações
O Médicos pela Vida (MPV) é um movimento criado a partir da pandemia que diz reunir médicos de diferentes especialidades que defenderam o uso de medicamentos sem comprovação científica de eficácia para tratar a doença, como a ivermectina e a hidroxicloroquina. Após a pandemia, o MPV segue publicando conteúdos – vários dos quais com caráter duvidoso, conforme apurado pelo Comprova em diferentes ocasiões.

O Médicos pela Vida também já foi condenado após denúncia do Ministério Público Federal (MPF) em 2023, por divulgação de “manifesto” em que fazia defesa do chamado "tratamento precoce" contra covid. A organização foi condenada a pagar R$ 55 milhões por danos morais coletivos e à saúde.

Já o Estúdio 5º Elemento é um programa on-line que discute temas como política, saúde e a "cultura woke" (termo inglês frequentemente utilizado para dar conotação de insensatez ou extremismo a pautas politicamente liberais, como feminismo ou ambientalismo, por exemplo). Nos vídeos publicados, os integrantes do canal também questionam temas como a mudança climática, vacinas contra a covid-19, pautas feministas etc.

Conforme apuração feita pelo Comprova, um dos integrantes do Estúdio 5º Elemento é Arthur Mario Pinheiro Machado. Em 2018, Machado foi preso pela Polícia Federal no âmbito da Operação Rizoma, um desdobramento da Operação Lava Jato. Ele foi apontado como líder de um esquema criminoso de lavagem de dinheiro, evasão de divisas e corrupção por meio de fraudes que geraram prejuízos aos fundos de pensão – uma movimentação que passaria dos R$ 20 milhões em propinas.

Machado também foi candidato a deputado federal pelo Republicanos-SP em 2022, mas não se elegeu.

Por que o Comprova investigou essa publicação: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas, saúde, mudanças climáticas e eleições e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.

Outras checagens sobre o tema: O Estadão classificou o mesmo post como enganoso. O Comprova já desmentiu outra publicação do Médicos pela Vida, que afirmava falsamente que o vírus da covid-19 foi criado em laboratório. Além disso, o Comprova verificou e desmentiu uma publicação nas redes sociais que alegava que a vacina da AstraZeneca continha varíola dos macacos. Também identificou que publicações usaram um artigo do site suíço Die Weltwoche para distorcer documentos vazados do Instituto Robert Koch (RKI), alegando incorretamente que a pandemia foi uma "fraude".
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