Waldeck Carneiro é deputado estadual (PSB) e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF). Divulgação
Publicado 18/07/2022 10:50 | Atualizado 19/07/2022 17:28
Por Waldeck Carneiro*


Na mitologia grega, Sísifo era o mais esperto dos mortais, tendo conseguido enganar várias vezes os deuses. Furiosas, as divindades aplicaram-lhe um castigo eterno: Sísifo teria que empurrar uma enorme pedra até o topo de uma montanha, que rolaria para baixo novamente, sem que ele, exausto, pudesse contê-la. Então, Sísifo teria que empurrá-la novamente para cima, cumprindo assim uma tarefa sem sentido, que jamais teria fim. O escritor e filósofo franco-argelino Albert Camus (1913-1960) usou essa alegoria como título de uma de suas obras mais conhecidas para questionar o sentido da vida humana e das relações de trabalho: é um ensaio sobre o absurdo, sobre tarefas inúteis, sobre a desesperança.


O Mito de Sísifo é metáfora perfeita para o tema do pagamento da dívida pública do RJ, que há décadas paga uma dívida que, não obstante, cresce incessantemente e se tornou, sem exagero, impagável. Desde que cheguei na Alerj em 2015, passei a me somar aos esforços da minoria parlamentar que insiste em propor auditoria da dívida pública do RJ, de modo a decompor esse monstro que corrói as contas públicas fluminenses. Os governadores Pezão, Dornelles, Witzel e Castro não se interessaram pela proposta. A Casa Legislativa decidiu então instalar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para entender melhor essa complexa questão e oferecer alternativas para seu equacionamento. Como membro da CPI, presidida pelo Deputado Luiz Paulo (PSD), passei a examinar com mais cuidado o problema.


Em primeiro lugar, cabe destacar que o mito do pagamento de dívidas impagáveis não assombra apenas o Rio de Janeiro. Dados e análises produzidos pela Auditoria Cidadã da Dívida mostram que o Orçamento Federal de 2022 prevê um pagamento de R$ 2.472 trilhões à dívida pública federal, o que corresponde a 56% da Despesa Geral da União neste ano. Isso supera em R$ 236 bilhões o valor da previsão do pagamento de dívidas pela União em 2021. Se considerarmos os valores executados, a União pagou R$ 1.960 trilhão à dívida pública federal em 2021 e R$ 1.381 trilhão em 2020. Ou seja, em 2021 a União fez pagamentos em favor da dívida pública federal que superaram a mesma despesa no ano anterior em R$ 579 bilhões. Apenas a diferença representa o quádruplo do orçamento do Ministério da Educação!


Mas como a União aumentou suas despesas com o pagamento da dívida, se está em vigor a desastrosa Emenda Constitucional nº 95/16, que impôs à União um teto de gastos por 20 anos? Muito simples: o teto de gastos, aberração constitucional, não fixa limites ao orçamento financeiro, onde se situam as despesas com o pagamento da dívida, mas apenas ao orçamento primário, onde estão previstas as despesas com saúde, educação, assistência social, cultura, ciência e tecnologia, enfim, onde está localizado o chamado Estado social no orçamento público. Em outras palavras, não há limitação orçamentária para pagamento às grandes corporações bancárias e aos agentes financeiros internacionais.


Ora, essa lógica contamina toda a Federação brasileira. Por exemplo, segundo dados da Secretaria de Estado de Fazenda do RJ, a dívida pública estadual, em dezembro de 2021, estava em R$ 184.129 bilhões, dos quais cerca de R$ 142 bilhões são dívidas com a União: contraídas diretamente junto à União ou por ela avalizadas. Trata-se de dívida que vem se acumulando há décadas, sempre em curva ascendente, apesar das amortizações feitas a cada ano. Ao longo dos anos, essa dívida, inclusive sua maior parcela (77%), que tem como credor a União, segue crescendo com a incidência de correção monetária e de juros. Voltaremos à questão dos juros mais adiante.


No contexto da crise de 2016/2017, foi sancionada a Lei Complementar Federal nº 159/17, de 19 de maio de 2017, que institui o Regime de Recuperação Fiscal (RRF) para os estados e o Distrito Federal. Trata-se de mero alívio momentâneo no caixa dos entes federativos subnacionais que decidem aderir ao RRF, pois, enquanto estiverem sob tal regime, deixam de pagar a dívida com a União, embora a dívida siga crescendo, com correção monetária e juros. O RJ aderiu ao primeiro ciclo do RRF em setembro de 2017, quando sua dívida com a União girava em torno de R$ 85 bilhões. Três anos depois, ao final do primeiro ciclo do RRF, o RJ devia à União cerca de R$ 120 bilhões! Fica claro, então, que o RRF não é fator de equilíbrio fiscal duradouro nem tampouco indutor de uma agenda de desenvolvimento. Evidentemente, os estados ficam coagidos, pois, sem aderir ao RRF, têm que assumir o pagamento de suas dívidas com a União, o que, no caso do RJ, inviabilizaria o funcionamento do estado. Ou seja, o RRF poderia ser conhecido como Regime de Repressão Fiscal, já que os estados são coagidos a aderir, sob pena de ficar com suas contas públicas inviabilizadas. Cabe acrescentar: o RRF segue o modelito neoliberal clássico, pois impõe aos estados aderentes uma agenda de ajuste e austeridade, a venda de seus ativos e ataques ao serviço público, tratado como inimigo número 1 da sociedade. Ademais, os aderentes passam a ser submetidos a uma espécie de intervenção federal não declarada. O Conselho de Supervisão do RRF manda mais que governadores, reitores e Poder Legislativo. Nas tratativas com a União, o estado se vê diante de uma “troica” (Conselho de Supervisão, Secretaria do Tesouro Nacional e Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional), à semelhança do que é retratado no filme “Jogo do Poder”, do brilhante Costa-Gravas, que aborda o impiedoso jugo imposto à Grécia, quando da renegociação de sua dívida, pelo FMI, pelo Banco Europeu e pela Comissão Europeia.


Cabe ainda uma palavra, voltando ao contexto brasileiro, sobre a relação da União com os entes subnacionais, o que me permite abordar a questão dos juros. Em 2017, publiquei artigo, indagando se o que temos no Brasil é “pacto” ou “pânico” federativo. Sim, porque deveria caber à União o papel de coordenar a agenda nacional de desenvolvimento, articular as relações interfederativas e colaborar na construção de soluções para os impasses fiscais vividos por estados, DF e municípios. Mas o que ocorre é o contrário. No caso do RJ, a União arrecadou no território fluminense, em 2021, segundo dados da Assessoria Fiscal da ALERJ, cerca de R$ 202 bilhões em tributos (mais que o valor total da dívida pública do RJ), mas investiu aqui apenas 20% desse valor. Além disso, várias decisões tomadas na esfera federal prejudicam a economia do RJ: tributação do petróleo no consumo e não na produção; Lei Kandir e sua proibição de recolhimento de ICMS na exportação de produtos primários; desmonte da política de conteúdo nacional na indústria naval; teto de alíquota de ICMS (principal tributo estadual) sem compensação relevante para o nosso estado, entre outras. E a União ainda cobra 4% de juros sobre a dívida pública do RJ, além da correção anual pelo IPCA. E já foi pior: os juros já chegaram a 6% e o indexador já foi o IGPDI. Corrigir a dívida anualmente pelo IPCA pode ser compreensível, mas cobrar juros, além da correção, é inaceitável. A União não é agente financeiro nem agiota (quase sinônimos), logo, não pode agir como se fosse um credor do mercado financeiro internacional, apertando o pescoço de estados e municípios.


Se não virarmos o jogo, redefinindo os marcos da dívida de forma verdadeiramente pactuada com a União, inclusive enfatizando as diferentes alternativas de compensação ao estado, o Mito de Sísifo no pagamento da dívida pública do RJ seguirá firme, em detrimento da melhoria da qualidade do serviço público estadual nas diferentes áreas e, em decorrência, do processo de garantia de direitos ao povo fluminense.
Fonte: Jornal Toda Palavra de Julho/2022
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